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terça-feira, 22 de junho de 2021

O QUE HOUVE, CORAÇÃO?*

 


(fonte: http://astrologiadadepressao.com/2014/01/08/mapas-maysa-monjardim/)


"Não tire da minha boca esse beijo,
nunca confunda carinho e desejo,
beba comigo a gota de sangue final".
(Ângela Ro Ro)


(CLIQUE PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
(Pink Floyd - "Don't leave me now" - trecho do filme "The Wall")
https://www.youtube.com/watch?v=NDNnvxoPPJg


     O que houve, coração? Cansaste? Estiveste tão distante. Para onde foste? Porque me abandonaste? Fiquei aqui, nessa sala fria, deitada, meu calor minguando... Por algumas frações de segundo estiveste afastado de mim. Ao meu lado, à medida que meu cansaço aumentava, algumas vozes desesperadas iam perdendo a intensidade. Onde estiveste quando te procurei?  Onde estiveste, coração, naquela hora?

     Na sua ausência, uma pressão compassada, forte e desesperada, tomou conta do meu peito, trazendo-me a sensação de que alguém te procurava. Sem sentir o seu ritmo, coração, não tendo o que dizer, permaneci calada. Eu nada sabia informar a seu respeito.

     Porém, aos poucos percebi que voltaste. Teria sido por compaixão? Por indecisão? Atendeste ao chamado daquelas mãos que me pressionavam. Passei a ouvir novamente, ao meu redor, aquelas vozes que sugeriam, naquele momento, alívio com o seu retorno.

     Eu, porém, depois de um breve espasmo, permaneci calada, imóvel. Senti-me fraca e desamparada com a sua ausência. Enfraquecida, nada mais conseguia elaborar, a não ser perguntar calada, a mim mesma, para onde tinhas ido, porque havias desistido de mim.

     Por muitos anos suportaste comigo toda sorte de sentimentos. Seu ritmo, incansável e companheiro, sempre fora determinante em todos os meus passos. Eu, porém, nunca havia me dado conta de que estavas ali, fiel e companheiro, e que também necessitavas de minha atenção...

     Egoísta, creio não ter te tratado com a intensidade de carinho que tu necessitavas. Creio que muitas vezes abusei de ti, exigi em excesso, e te causei desgosto. Fiz com que sofresses por pequenos rancores, por tolas ilusões e questões insignificantes. Porém, nunca poderia imaginar que assim, de repente, sem qualquer advertência prévia, pudesses desistir de mim, me deixar tão fria e só.

     Nunca mais me abandones, coração. Haverá um dia em que seu cansaço vai me fazer compreender que precisas partir. Porém, ainda é muito cedo, ainda há muito o que fazer. Preciso da sua companhia, da sua alegria, do seu ritmo quente, compassado e constante. Não me deixes, não me abandones... Fique comigo até que nos sintamos cansados juntos, até cairmos exaustos de vida, até que nossos anseios sejam todos eles consumados.


_________________________________ 
*Considerações hipotéticas em relação aos pensamentos de uma jovem amiga que, enquanto submetida a um procedimento cirúrgico de baixo risco, sofreu uma parada cardíaca (e hoje, recuperada, do outro lado da tela, com um copo de uísque em uma das mãos e um cigarro na outra, saudou-me com um sorriso no rosto).

quinta-feira, 10 de junho de 2021

A PRAÇA CAMÕES


"Eu canto o peito ilustre lusitano a quem neptuno e marte obedeceram"
Monumento a Camões - detalhe
Foto: acervo pessoal


"Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta."
(Camões, "Os Lusíadas" - Canto I)


(PARA OUVIR, CLIQUE NA SETA)
"Fado Tropical" - Chico Buarque/Ruy Guerra
https://www.youtube.com/watch?v=NfjaFMah7sE



     Não, não é uma praça árida e oprimida na região central de Ribeirão Preto. Em cada um de seus quatro pontos cardeais o cimento e o concreto dos prédios com ela contrastam e digladiam. Ela resiste. Ela tem como escudo suas plantas, suas árvores antigas, e seus passeios tomados por folhas secas. Na escuridão da noite, cuida de sua proteção a luz que emana dos pequenos postes - verdadeiros faróis plantados em seus canteiros. Eu a cruzo todos os dias, e me sinto um privilegiado por tê-la como vizinha.


Praça Luis de Camões - Ribeirão Preto/SP
Foto: acervo pessoal

     Não, decididamente não é apenas uma praça. Com um monumento a Camões e aos portugueses ao seu centro, ela é uma inspiração a quem quer que por ela passe.

Monumento a Camões e aos portugueses - Praça Luis de Camões, Ribeirão Preto/SP
foto: acervo pessoal


     Nesse monumento Camões, altivo e altaneiro, guia os destinos incertos traçados pelo comandante de uma caravela. Embarco nessa nau portentosa que singra mares e oceanos - assim como fizeram os portugueses nas grandes navegações. Os canteiros da praça, então, transformam-se em cardumes; e seus farois em pequenas embarcações. Vou da popa à proa vigiando suas sombras e seus caminhos.


"Vou da popa à proa vigiando suas sombras"
Foto: acervo pessoal

     Em seus bancos de madeira, jovens distraídos e senhores compenetrados são valentes guerreiros que cuidam para que ela resista às tormentas que teimam em transformar a cidade. 


"Em seus bancos de madeira..."
Foto: acervo pessoal

     O poeta tornou-se o guia que, na praça, cuida da condução de seu povo - e da minha travessia. Nessa navegação contorno o sudoeste de Portugal e o sul da Espanha. Vou além: passo pelo estreito de Gibraltar e sigo pela costa de Marrocos, na África, até atingir o Cabo Bojador no Saara Ocidental. A partir dali experimento mares nunca d'antes navegados...

     O monumento aos portugueses, homenageando Camões, domina toda a praça. Camões lutou no norte da África (onde perdeu a visão do olho direito), fez muitas viagens, naufragou na foz do rio Mekong, reapareceu em Moçambique e retornou a Portugal para morrer, em 1580, em condição de extrema pobreza. Ficou conhecido na história e na literatura como o autor do maior poema épico da língua portuguesa - "Os Lusíadas", publicado há mais de quatro séculos.

     Ao cruzar a praça que leva seu nome eu reverencio Camões e as viagens que, nessa travessia, inspirado por ele, diariamente faço.