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quarta-feira, 24 de novembro de 2021

E ENTÃO, O QUE DIZ A SUA OBRA?


Vincent van Gogh - "Autorretrato com chapéu de feltro" (1887-1888)
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Self-portrait_with_Felt_Hat_by_Vincent_van_Gogh.jpg

     - ... veja o Van Gogh, por exemplo. Pobretão, solitário, dependente do irmão, carente, um jeito meio maluco...

    Esse juízo a respeito do artista, contudo, é proveniente de uma lógica muito simplista. Incompleta, moldada por um olhar desatento e superficial, ela traduz a visão de quem não enxergou, de quem permaneceu distante.

Don McLean - "Vincent"
https://www.youtube.com/watch?v=vw9d3YlysS0

     Ao nos aproximarmos de Van Gogh, ao procurarmos ler a sua alma exposta em sua obra, nós nos deparamos com um homem bonito, visitamos seus apegos. Para ele, penso eu, não foi nada fácil suportar a cegueira que reinava ao seu redor.

     Ao pensar na história de vida de van Gogh, sinto que não posso permanecer distante daquele a quem observo, se quero conhecê-lo bem. Chegar mais perto e "mergulhar", é a única maneira de compreender as mensagens de amor - ou desamor - emitidas por alguém.

     Nossas manifestações, nossos posicionamentos, nossas palavras, são o retrato fiel daquilo que somos: apaziguadores ou beligerantes? agregadores ou segregacionistas? compreensivos ou radicais? interessantes ou desprezíveis? inspiradores ou vazios?  Não sei, somente olhos e corações atentos podem tentar avaliar o que procuram compreender...

    - Mas.... e você, consegue ler a obra que produz?

    Pensando bem....

    - Que bobagem! Para que alguém iria querer gastar seu precioso tempo investigando aquilo ou aquele "que diz tudo em poucas palavras", ou que "dá o recado" em uma única imagem, ou ainda que consegue tirar suas conclusões por uma simples leitura? 

     Quanto a mim, não consigo permanecer indiferente às publicações e às mensagens daqueles que me são próximos, ou daqueles a quem fui movido a querer conhecer. Elas me afetam. Elas mexem comigo. Elas me transformam. Elas me contam o que há na mente e no coração do autor. Elas têm o poder de promover o meu desejo de aproximação ou de afastamento daquele que a tornou pública. Dedico algum tempo para ir além da simples leitura dos textos que chegam aos meus olhos. Quero compreender a obra. Minha vontade é de que venha desprovida de juízos superficiais e destrutivos; de que promova aproximação; que propague uma mensagem de paz, do mais profundo sentimento de amor e compreensão por tudo e por todos... pois que tudo e todos merecem compreensão - e uma boa dose de compaixão.

    No final, porém, percebo que a tendência de querer olhar além nos coloca cada vez mais sozinhos.

    - Mas, e então? E você, já parou para pensar no que diz a sua própria obra?


Vincent

(Don McLean)

 

Starry, starry night

Paint your palette blue and gray

Look out on a summer's day

With eyes that know the darkness in my soul

 

Shadows on the hills

Sketch the trees and the daffodils

Catch the breeze and the winter chills

In colors on the snowy linen land

 

Now I understand

What you tried to say to me

And how you suffered for your sanity

And how you tried to set them free

 

They would not listen, they did not know how

Perhaps they'll listen now

 

Starry, starry night

Flaming flowers that brightly blaze

Swirling clouds in violet haze

Reflect in Vincent's eyes of china blue

 

Colors changing hue

Morning fields of amber grain

Weathered faces lined in pain

Are soothed beneath the artist's loving hand

 

Now I understand

What you tried to say to me

And how you suffered for your sanity

And how you tried to set them free

 

They would not listen, they did not know how

Perhaps they'll listen now

 

For they could not love you

But still your love was true

And when no hope was left in sight

On that starry, starry night

 

You took your life, as lovers often do

But I could've told you Vincent

This world was never meant for

One as beautiful as you

 

Starry, starry night

Portraits hung in empty halls

Frame-less heads on nameless walls

With eyes that watch the world and can't forget

 

Like the strangers that you've met

The ragged men in ragged clothes

The silver thorn of bloody rose

Lie crushed and broken on the virgin snow

 

Now I think I know

What you tried to say to me

And how you suffered for your sanity

And how you tried to set them free

 

They would not listen, they're not listening still

Perhaps they never will

Vincent

 

Estrelada, noite estrelada

Pinte sua paleta de azul e cinza

Olhe os dias de verão lá fora

Com olhos que conhecem a escuridão da minha alma

 

Sombras nas colinas

Esboce as árvores e os narcisos

Sinta a brisa e os arrepios do inverno

Nas cores da terra coberta de neve

 

Agora eu entendo

O que você tentou me dizer

E como você sofreu por sua sanidade

E como você tentou libertá-los

 

Eles não te ouviam, não sabiam como

Talvez agora eles te ouçam

 

Estrelada, noite estrelada

Flores flamejantes que brilham em chamas

Nuvens que giram na neblina roxa

Refletem nos olhos azuis de Vincent

 

Cores mudando de tom

O amanhecer nos campos de grãos âmbar

Rostos cansados e marcados pela dor

São suavizados pelas mãos carinhosas do artista

 

Agora eu entendo

O que você tentou me dizer

E como você sofreu por sua sanidade

E como você tentou libertá-los

 

Eles não te ouviam, não sabiam como

Talvez agora eles te ouçam

 

Pois eles não conseguiam te amar

Mas mesmo assim seu amor era verdadeiro

E quando não havia mais esperança

Naquela noite estrelada

 

Você tirou sua vida, como amantes costumam fazer

Mas eu poderia ter dito a você, Vincent

Esse mundo não foi feito

Para alguém maravilhoso como você

 

Estrelada, noite estrelada

Retratos pendurados em paredes vazias

Cabeças sem porta-retratos em paredes sem nomes

Com olhos que observam o mundo e não esquecem

 

Como os estranhos que você conheceu

Os homens arrasados com roupas esfarrapadas

O espinho prateado de uma rosa sangrenta

Esmagado e quebrado na neve virgem

 

Agora eu acho que entendo

O que você tentou me dizer

E como você sofreu por sua sanidade

E como você tentou libertá-los

 

Eles não te ouviam, e ainda não ouvem

Talvez nunca ouçam

 

terça-feira, 9 de novembro de 2021

A CASA DE ANÍBAL

 

A casa de Aníbal
https://lulacerda.ig.com.br/rio-antigo-por-rafael-bokor-a-casa-que-marcou-epoca-em-ipanema/

    Em um encontro recente com um grupo de amigos, comentamos "Viagem aos seios de Duília" (1944) - conto de Aníbal Machado*. Na oportunidade, além de comentarmos o texto literário, falamos também da consideração que o Aníbal Machado tinha pelos seus amigos. Sua consideração era tamanha - e declarada -, que costumava dedicar a eles os contos que escrevia. Assim, por exemplo, "O iniciado do vento" foi dedicado a João Cabral de Melo Neto; "Viagem aos seios de Duília", a Carlos Drummond de Andrade; "O desfile de chapéus", a Rubem Braga; "O acontecimento em Vila Feliz", a Rachel de Queiroz**.


Baden Powell - "Serenata do Adeus" (Vinícius de Moraes)
https://www.youtube.com/watch?v=hDyU86j5-XQ

    Aníbal Machado adorava receber amigos em sua casa, na Rua Visconde de Pirajá, 487, no Rio de Janeiro. Sua casa era, então, um ponto de encontro de intelectuais. Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Di Cavalcanti, Portinari, Otto Lara Rezende, Rubem Braga, João Cabral de Melo Neto, Moacyr Scliar e Tônia Carrero, dentre tantos, eram alguns de seus frequentadores.

    Aníbal Machado foi um grande articulador cultural. Inspirou muita gente a escrever, publicar, montar grupos e peças teatrais. Publicou pouco: um ensaio sobre cinema, alguns contos, um livro de reflexões filosóficas ("Cadernos de João") e, postumamente, por iniciativa de uma de suas filhas, o romance "João Ternura".

    Otto Maria Carpeaux***, em "Presença de Aníbal"****, assim se refere a ele: 

"(...) um homem trepidante, falando com velocidade de fígaro, temperamento exuberante, pedindo notícias, dando notícias, espalhando ideias, sugestões, um grande conversador, não aparenta sua idade, parece um jovem entusiasmado pelas letras, pela poesia, pelo teatro, pelo cinema, seu riso contamina a gente, é uma mocidade eterna e assim o guardamos para sempre na memória (...)."

    Ainda há pouco, relendo "Balada em prosa de Aníbal Machado", em texto de Carlos Drummond de Andrade*****, uma descrição de sua casa, que já não existe mais, reabriu para mim os seus portões - e os portões de tantas outras casas tais, que visitei.

    - Casas assim, como a de Aníbal, tão cheias de vida e inspiração, não poderiam desaparecer - nem as casas, nem os "Aníbais".

    Eis então que, passeando pelas páginas de "João Ternura", vi-me à porta do imóvel da Rua Visconde do Pirajá, 487, em um Rio de outros tempos. Passei pelos portões, atravessei os jardins, troquei passos curtos, entrei e procurei ouvir o distinto morador... 

    - Não, não era assim, vazia, que Aníbal gostava de ver sua casa... 

    Hoje, sua casa está nos alicerces de um enorme edifício, ou muito acima de seu terraço. Imaterializada em seu piso desmanchado, limitada por paredes sem tijolos, arejada por janelas derrubadas, e protegida pelo forro de madeira comido por traças, eu vos convido para que entrem nesta casa que ninguém mais vê... e também para que procurem ouvir as animadas conversas que ficaram guardadas em suas estruturas que não existem mais...

_____________________________ 

*Aníbal Machado (1894-1964) escritor, professor e crítico de arte

**Contos publicados em "A morte da porta-estandarte e Tati , a Garota, e outras histórias" (Ed. José Olympio, 5. ed., 1973)

**publicado na apresentação de "João Ternura" (Ed. José Olympio, 3.ed., 1976)

*** Otto Maria Carpeaux, (1900-1978) - Nascido Otto Karpfen, foi jornalista, ensaísta, crítico literário, de arte e de música, historiador literário, nasceu em Viena, Áustria, e naturalizou-se brasileiro.

****Texto publicado na apresentação de "João Ternura" (Ed. José Olympio, 3.ed., 1976, p.XIII)

*****publicado na apresentação de "João Ternura"