Neste blog publico textos a respeito de livros e artigos que leio, cenas do cotidiano que observo, pensamentos que tenho, e matérias que me fazem sentir que merecem ser relembradas ou relidas de tempos em tempos.
Com pouco mais de vinte anos, recém graduada na faculdade de Direito, a moça - inapropriadamente batizada "Felicidade" - não perde oportunidade para fazer uso da palavra. Seja em que tipo de evento for ela se levanta, ajeita os cabelos, ergue a cabeça, e, com o dedo em riste, "dispara" artigos do Código Civil. Decorou tudo, treinou o jargão jurídico, e só se manifesta de forma incompreensiva para os simples mortais. Acrescenta à sua fala meia dúzia de considerações iniciais, querendo, com isso, apontar falhas no encaminhamento formal de quaisquer discussões. Com palavras talhadas para cada ocasião, os olhos ameaçam e os gestos estudados acompanham a fala: tudo "nos termos da lei" - ela faz questão de frisar. Em pouco tempo terá decorado todos os códigos, portarias, dispositivos legais vigentes, e poderá estar na condição de determinar o destino de muita gente. Só tenho o receio de que ela, em algum momento, seja espontânea ao mover a cabeça, ou que a mova de forma abrupta, pois dessa forma os artigos e as máximas forenses podem se embaralhar em sua mente - e aí seu conhecimento esquadrejado pode se tornar um grande "Samba do crioulo doido"*.
- Palmas pra ela! Ela as quer e as espera!
No entanto, o tempo requer tempo para poder ensinar... Serão necessários alguns Dezembros, algumas perdas, pelo menos meia dúzia de rugas, fios de cabelos brancos e muitas lides emocionais para que a vaidade e a prepotência compreendam a necessidade da administração da arrogância, acrescentando a elas os valores da ponderação, da contenção, da humildade, da sabedoria e da serenidade - que não estão nos livros; que não estão nos Códigos, nos manuais, nas apostilas; que só a experiência de vida, adquirida ao longo do tempo, pode ensinar...
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Nei Lopes, dele, "Justiça Gratuita"
https://www.youtube.com/watch?v=h_cimOPL1DA
JUSTIÇA GRATUITA
(Nei Lopes)
Felicidade passou no vestibular E agora tá ruim de aturar Mudou-se pra Faculdade de Direito E só fala com a gente de um jeito Cheio de preliminar (é de amagar)
Casal abriu, ela diz que é divórcio Parceria é litisconsórcio Sacanagem é libidinagem e atentado ao pudor Só fala cheia de subterfúgios Nego morreu, ela diz que é "de-cujus" Não aguento mais essa Felicidade Doutor defensor (só mesmo um Desembargador)
Amigação Pra ela é concubinato Vigarice é estelionato Caduquice de esclerosado é demência senil Sumiu na poeira Ela chama de ausente Não pagou a conta é inadimplente Ela diz, consultando o Código Civil
Me pediu uma grana Dizendo que era um contrato de mútuo Comeu e bebeu, disse que era usufruto E levou pra casa o meu violão
Meses depois Que fez este agravo ao meu instrumento Ela, então, me disse, cheia de argumento Que o adquiriu por usucapião (Seu defensor, não é mole não!
taí minha procuração E o documento que atesta minha humilde condição! Requeira prontamente meu divórcio e uma pensão! se ela não pagar vai cantar samba na prisão...)
_______________________ * "Samba do crioulo doido" (1966) - Referência ao samba de autoria de Sérgio Porto (1923-1968), escritor e jornalista, que queria ironizar a obrigatoriedade das escolas de samba retratarem somente fatos históricos nos seus sambas.