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terça-feira, 28 de novembro de 2023

CARTA A HERMILA*

 

https://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,AA1317500-7086,00.html


Querida Hermila:

     Assisti ontem, pela TV, a entrega do troféu Kikito, no Palácio dos Festivais, em Gramado/RS. Você estava deslumbrante no comando da apresentação do evento. A alegria transmitida pelo seu sorriso, que conheci aqui em Iguatu, há anos, não mudou. Notei que a insegurança  estampada em seu rosto no dia da sua partida, há longínquos dezessete anos, tendo sido deixada para trás, foi substituída pela sua imagem de celebridade em uma importante cerimônia de premiação. Naquele dia, depois de termos nos amado, de minha moto, na esperança de seu retorno, acompanhei por alguns quilômetros o seu olhar emoldurado por uma das janelas do ônibus que te levava para o Sul.

     Depois que você partiu, e por algum tempo ainda, muito se falou a respeito de sua ousadia aqui em Iguatu. Não te esqueci, e não te esqueço. Continuo só. Hoje, os que te veem na TV nada sabem a respeito da determinação que você tinha em conseguir encontrar, longe daqui, o seu próprio céu. Querendo-te bem como sempre te quis, sofri muito por não ter podido adquirir todos os números da rifa que você vendia para comprar uma passagem de ônibus para Porto Alegre, e que premiava o ganhador com "uma noite no paraíso" - uma noite com Suely, não com Hermila. Sua vontade de ir embora para bem longe e encontrar o seu céu foi muito grande. E você venceu. Se tivesse se abatido, sem poder se realizar, continuaria condenada à mediocridade de uma vida vazia. Parabéns, Hermila. 

     Tudo por aqui mudou. Iguatu já não é mais uma pequena cidade dormitório às margens dos trilhos da estrada de ferro. Com a instalação de cursos de graduação a cidade se desenvolveu. Tanto que, com os ganhos auferidos pelo meu serviço de motoboy, consegui concluir o curso de Direito na Universidade Regional do Cariri, e já, há oito anos, com muitos clientes, tenho o meu escritório profissional de advogado.

Roberto Carlos - "Outra vez" (Isolda)
https://www.youtube.com/watch?v=dLithcjeEE8

     Mas não te esqueço. Você foi o grande amor que tive. Guardo a lembrança de sua última passagem por Iguatu quando, vencida pelo custo de vida na cidade de São Paulo, seu único projeto era criar o seu filho com o produto da venda de CDs piratas no Mercado Municipal. Mas seu companheiro não deu mais notícias, não retornou como havia prometido, e o projeto de comercializar CDs não se realizou - para sorte sua.

     Te vi ontem na TV e te aplaudi com emoção. Os olhos de quem assistiu a cerimônia enxergaram apenas o alvo dos holofotes: não sabiam e, creio, nem queriam e nem querem saber dos degraus e quedas sofridas por você até encontrar e atingir o seu próprio céu. Mas eu, sabendo de seus tropeços, conheço toda a sua história. E ainda aqui, comigo, com o mesmo carinho de tantos anos, reservo para você um cantinho no meu coração.

     Do seu motoboy de Iguatu,

     João

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*Inspirado no filme "O céu de Suely" (BR/FR/ALE, 2006. Dir.: Karim Aïnouz)