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terça-feira, 15 de dezembro de 2020

VIAGENS DE TREM

 

(CLIQUE PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)

(Toots Thielemans, dele, "Old friend")




"Lá vai o trem com o menino
lá vai a vida a rodar"
(Ferreira Gullar)



     - Olha o trem! gritava o meu tio, da porta de sua loja. 

     Mesmo que não houvesse, das janelas do trem, alguém que se atentasse para isso, minha avó, dos degraus da escada que dava acesso à sua casa, sorrindo, acenava em direção aos vagões.




("O trem obstruindo o trânsito na Rua Dep. João de Faria, em Guará/SP". Postada no facebook por Ademir Segundo)


     E eu, menino,...

... ficava calado na calçada, ao lado dela,
olhando a passagem do trem encher de vida o ritmo monótono da cidade.
 
Sem saber onde queria chegar, 
por lugares distantes viajava,
longe, muito longe de minha casa,
sobre trilhos de aço laminado,
enfrentando tempestades, matas, rios e montanhas, 
impaciente com a morosidade do tempo...

...do tempo que fez de mim o que hoje sou,
sem que eu pudesse me dar conta de sua passagem.



(Estação Mogiana - Guará, SP, 1974 - foto postada no facebook por Luiz Carlos Eufrosino)

sábado, 12 de dezembro de 2020

O PRÉDIO DA ANTIGA ESTAÇÃO DA ESTRADA DE FERRO, EM ARAGUARI (MG)

 

CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ;
ASSISTA DEPOIS DE TER FEITO A LEITURA
"Ponta de Areia" (Milton Nascimento) - Milton Nascimento e Nana Caymmi
https://www.youtube.com/watch?v=Bj86K1SLMDk

     Gosto dos prédios das antigas estações de trem. Eles são referências inspiradoras. Eles guardam histórias que têm sido esquecidas. Destruí-los é jogar fora os alicerces do que hoje somos....

Prédio da Prefeitura Municipal de Araguari, MG
("Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da antiga Estação da Estrada de Ferro Goiás")
foto: arq. pessoal - 2010

     Outro dia fui a Araguari, cidade mineira, que, no passado, foi entroncamento de três importantes ferrovias: a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro (CMEF), a Estrada de Ferro Goiás (EFG), e a Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM). Ao ver o prédio da antiga estação da EFGoiás, no alto da cidade, lembrei-me do caso dos "Irmãos Naves"*, um dos maiores erros judiciários ocorridos no Brasil, das cenas do filme a respeito desse caso que foram rodadas em uma plataforma de estação de trem; lembrei-me também, e em especial, do Marechal Rondon: foi em Araguari que, em 1900, o então jovem oficial do Exército, Cândido Mariano da Silva Rondon, vindo de trem, do Rio de Janeiro, desembarcou, com a missão de comandar a implantação da linha telegráfica no Estado de Mato Grosso. Foi dali, portanto, de Araguari, que Rondon iniciou a marcha através de Goiás, rumo a um Brasil até então praticamente virgem, com a árdua tarefa de interligar, pelo telégrafo, a costa do País à região Centro-Oeste**.

     Sempre que vou a Araguari e passo em frente à antiga estação da EFGoiás, penso nas histórias que li a respeito do Marechal Rondon. Ao olhar aquele prédio de estação, fico com a sensação fantasiosa de que o Brasil está começando a ser reconstruído; agora, não mais pelo telégrafo, mas pelos exemplos do Rondon e pela disposição, nesse sentido, de todo o povo brasileiro - a começar pelo povo de Araguari.

     Como se não bastasse a restauração do prédio, o carinho que a cidade vem dedicando a ele é exemplar. De volta à cidade, em uma ocasião festiva, o prédio esbanjava beleza... e eu fiquei ali, naquela noite, por mais de hora, parado diante dele, simplesmente contemplando o seu contorno enfeitado de luzes...


"O prédio da antiga Estação da Estrada de Ferro Goiás"
Foto: arq. pessoal (2010)

     O prédio da estação ferroviária da antiga Estrada de Ferro Goiás, em Araguari, é uma fonte de inspiração. Restaurado, ele preserva, em sua beleza e em suas estruturas, histórias do nosso País e de nossos pioneiros - que têm sido esquecidos...

___________________________
*"O caso dos Irmãos Naves" (Brasil, 1967. Dir.: Luis Sérgio Person) - filme a respeito de um grave erro judiciário ocorrido na cidade de Araguari/MG, baseado no livro de João Alamy Filho ("O Caso dos Irmãos Naves: o erro judiciário de Araguari. São Paulo, Círculo do Livro)
**Para saber mais sobre o Rondon, ótimo livro a ser lido: "Rondon: o marechal da floresta" / por Todd A. Diacon: tradução Laura Teixeira Motta; coordenação Élio Gaspari e Lília M. Schwarcz - São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (Coleção "Perfis Brasileiros")

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A MINHA MANGUEIRA



 "Mangueira" - Foto: arq. pessoal



"Quando vejo uma luz que ninguém vê

E me sinto só, não sei por quê

Corro, vou pelo campo procurar

Lá tenho um amigo pra contar (...)"

(Paulinho Nogueira)


CLIQUE NA SETA

Paulinho Nogueira - "O pequeno amigo"

https://www.youtube.com/watch?v=YOCmmft5TQI


 

Foi no quintal de nossa casa que ela quis morar.

Fez sombras, ficou forte, deu frutos, cresceu: cresci com ela.

Testemunhou, por muitos anos, o caldeirão com leite em cima do muro:

Presente diário do fazendeiro-amigo, vizinho de fundo.


Contente com tão boa vizinhança, a mangueira buscou o céu,

Cresceu mais, fez mais sombras, deu mais frutos, deu pouso a pássaros.

Acompanhou a família nas festas e reuniões

Que aconteciam no fundo do quintal.


O tempo passou; nosso vizinho se foi, novos vizinhos vieram.

Feito braços de boas-vindas,

nossa mangueira estendeu seus galhos, cruzou o muro.

Passou a presentear o novo morador com suas folhas e seus frutos.


Avessa à demarcação de limites,

a mangueira ainda prolongou suas raízes por baixo do muro,

manifestou seu desejo de promover boa vizinhança,

e anunciou que fronteiras não devem imperar entre bons confrontantes.


Os novos vizinhos, incapazes de entender o significado de tais gestos,

Instalaram no muro cercas de arame eletrificado.

Tocadas pelas folhas e pelos frutos da mangueira,

um alarme passou a soar escandalosamente em ouvidos vigilantes.


Partindo do outro lado do muro, a queixa e o pedido logo chegaram:

"Frondosa e alta, a mangueira incomoda;

Suas folhas e seus frutos esbarram no arame,

fazem disparar o alarme: eliminá-la é a solução."

 

Infrutíferas as negociações, o quintal ficou triste:

Sem a árvore, sem as sombras, sem os frutos, sem os pássaros.

Sobre o muro, fios enrolados exaltam campos de concentração -e seus idealizadores:

Mas a minha mangueira, indestrutível, permanece comigo.



quarta-feira, 25 de novembro de 2020

ENTRE A "SINFONIA" E "OS SERTÕES": A CIVILIZAÇÃO E A BARBÁRIE

 


"Memorial JK" - Brasília, DF (foto: arq. pessoal)

(Projeto de O. Niemeyer - Escultura de JK por Honório Peçanha)



"Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos, ou desaparecemos."
(Euclides da Cunha)


     Lendo mais uma vez o poema da "Sinfonia da Alvorada", do Vinícius de Moraes, as imagens que me foram surgindo, misturadas com a construção de Brasília, foram as de Canudos - descritas por Euclides da Cunha em "Os Sertões".

     Pensando bem, parece-me que essa mistura faz muito sentido, em especial no que se refere à questão da forma.

     O poema da "Sinfonia" é dividido em cinco partes*; "Os Sertões" em três**. 

     No poema, o Vinícius descreveu primeiramente o lugar ("O planalto deserto"):

"(...) No princípio era o agreste: o céu azul, a terra vermelho-pungente e o verde triste do cerrado. Eram antigas solidões banhadas de mansos rios inocentes por entre as matas recortadas. Não havia ninguém. A solidão mais parecia um povo inexistente dizendo coisas sobre nada (...)".
 
     "A Terra" é a primeira parte de "Os Sertões". Ali, o Euclides da Cunha tratou da geologia e da geografia do sertão. Ele descreveu o relevo, a paisagem e a seca. Nessa primeira parte ele desenvolveu a ideia de que já havia ali um prenúncio de revolução; que há milênios o sertão era banhado pelo mar, e que esse sertão era o resultado de um mar extinto pelo solo que se levantara. Que, ainda, o sertão ia virar "praia"; que o homem, com seu trabalho, amenizaria o efeito das secas - conforme profetizava Antônio Conselheiro.  

     Na segunda e terceira partes do poema da "Sinfonia", o Vinícius descreveu o homem e sua chegada no Planalto Central, em "O Homem" e "A Chegada dos Candangos"; em "Os Sertões", na título II, "O Homem", Euclides da Cunha também falou do homem, do sertanejo que lá estava.

"Mas agora viera para ficar. Seus pés plantaram-se na terra vermelha do altiplano. Seu olhar descortinou as grandes extensões sem mágoa no círculo infinito do horizonte. Seu peito encheu-se do ar puro do cerrado. Sim, ele plantaria no deserto uma cidade muito branca e muito pura...", diz o Vinícius no poema da "Sinfonia".

     Já em "O Homem" de "Os Sertões", segunda parte de sua obra, Euclides da Cunha discutiu a formação racial do sertanejo. Comparou o mestiço do sertão com o mulato do litoral, afirmando haver superioridade racial de um sobre o outro. E concluiu: 

"O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral." 

     E, em outra passagem, diz Euclides da Cunha: 

"(...) o andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente (...)"

     Em "A Luta" - terceira parte de "Os Sertões" - Euclides da Cunha mostrou a resistência e a matança - diferente da luta do homem que constrói uma cidade, e que Vinícius mostrou na quarta parte do poema da "Sinfonia": "O Trabalho e a Construção".

     Assim, no poema da "Sinfonia", a luta em união de esforços ergue, eleva, aproxima, celebra a vida e o trabalho:

"E um milhão de metros cúbicos de brita foi necessário, e quatrocentos quilômetros de laminados, e toneladas e toneladas de madeira foram necessárias. E 60 mil operários! Foram necessários 60 mil trabalhadores vindos de todos os cantos da imensa pátria, sobretudo do Norte! 60 mil candangos foram necessários para desbastar, cavar, estaquear, cortar, serrar, pregar, soldar, empurrar, cimentar, aplainar, polir, erguer as brancas empenas..." 


("Ou progredimos..." - foto: Brasília, da janela de um prédio - arq. pessoal)


     Em "Os Sertões", em desígnios conflitantes, a luta abate, extingue, destrói:

"Concluídas as pesquisas nos arredores, e recolhidas as armas e munições, os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regulamente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho."

 ("...ou desaparecemos." - foto Igreja destruída em Canudos - em http://www.girafamania.com.br/montagem/fotografia-brasil-guerra-canudos.htm)


     E foi por erguer, diferentemente de destruir, que o poema da "Sinfonia" mereceu ser coroado com uma outra parte - o "Coral" - que é justamente a celebração da beleza resultante da comunhão de esforços construtivos:

"Terra-esperança, promessa de um mundo de paz e de amor (...)" - no poema da "Sinfonia". 

     Desses dois trabalhos, é o próprio Euclides da Cunha, em "Os Sertões", quem nos ensina:

"Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos."


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR A HISTÓRIA DE CANUDOS
NA LETRA DE UM SAMBA-ENREDO)
(Mestre Marçal - "Os Sertões" - Edeor de Paula - samba-enredo
GRES EM CIMA DA HORA - 1976)

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OS SERTÕES

(Edeor de Paula)

Marcado pela própria natureza
O Nordeste do meu Brasil
Oh! solitário sertão
De sofrimento e solidão
A terra é seca
Mal se pode cultivar
Morrem as plantas e foge o ar
A vida é triste nesse lugar

Sertanejo é forte
Supera miséria sem fim
Sertanejo homem forte (bis)
Dizia o Poeta assim

Foi no século passado
No interior da Bahia
O Homem revoltado com a sorte
do mundo em que vivia
Ocultou-se no sertão
espalhando a rebeldia
Se revoltando contra a lei
Que a sociedade oferecia

Os Jagunços lutaram
Até o final
Defendendo Canudos (bis)
Naquela guerra fatal


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* "A Sinfonia da Alvorada":  I - O Planalto Deserto; II - O Homem; III - A Chegada dos Candangos; IV - O Trabalho e a Construção; V - Coral
** "Os Sertões": I - A Terra; II - O Homem; III - A Luta

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

UMA SENHORA VENDE ESPIGAS DE MILHO NO CAMBOJA

 

Em um mercado, no Camboja - Foto: Flávia Ferriani


     Eis-me aqui. Vendo espigas de milho. É o que faço para poder sobreviver. 


CLIQUE NA SETA

"La violetera" - do filme "City Lights" - Charlie Chaplin
https://www.youtube.com/watch?v=JVieXBTm10k


     Te ofereço uma lembrança. Guarde contigo a leitura que fizeste da minha pessoa, em sua foto. Talvez essa leitura possa conversar com o seu próprio coração. Se isso acontecer, estou certa de que vendedoras de milho de seu país terão motivos para te agradecer...

     De alguma forma, pelo vento, pelo ar, ou por qualquer forma de transmissão de energia, eu conseguirei sentir a nobreza de seus gestos... e terei bons motivos para seguir em frente.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

VERDEJANTES TEMPOS

 

Foto: arq. pessoal (Araguari, MG, dez/10)



"olha! que chuva boa prazenteira"
(Tom Jobim)



CLIQUE NA SETA
Tom Jobim - "Chovendo na roseira" (Double Rainbow)
https://www.youtube.com/watch?v=kAzR6jWWNYk


     Ontem, enquanto trafegava por uma rodovia, eu ia observando a paisagem. Lembrava-me de ter passado por ali havia poucas semanas, e que os campos secos, sem vida, judiados pelo calor, haviam apagado minha alegria de ver o sol.

     Entregue às razões da natureza, a terra padecia. Sem fontes para fornecer energia, ela fazia sofrer toda a vegetação.

     Com a chuva dos últimos dias a terra nutriu-se de forças e voltou a respirar: renovou-se de esperanças de poder verdejar.

     Agradecida, a vegetação fez do amarelo queimado a pintura de um verde alegre.

     Toda a vegetação, vagarosamente, vestiu-se de beleza... Inspiradas pelo vento, as folhas das árvores dançavam e acenavam alegremente para a alegria dos meus olhos, e para quem quisesse vê-las...

    Oxalá fossemos também - e sempre - assim: capazes de inspirar, uns aos outros, esperanças de renovação, e de agradecer, com beleza, sem a necessidade de aplausos.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

AO QUE VAI PARTIR


(Avião decolando. Fonte: http://www.avioesemusicas.com/2010-decolando.html)


Para Jodie, Leilani, Mark, Jerry e Mike,
onde quer que estejam


     Nas difíceis horas de despedidas há sempre muita dificuldade para se dizer coisas simples, em especial quando há a noção de que o “até mais” significa “dificilmente uma outra vez...”.

   Mas, há muitos anos, ainda na década de 70, depois de algum tempo em uma terra distante, o momento de voltar havia chegado. 

     No dia da partida, um grupo de amigos adolescentes foi se despedir daquele jovem que ia voltar para o seu país. Todos o abraçaram, apertaram suas mãos, disseram algumas palavras, e foram-se. Estranhamente, nenhum deles comentou a respeito do motivo da visita. Todos sabiam que uma fase se encerrava.

   Minutos depois alguém daquele grupo deu um telefonema àquele que ia partir, pediu a ele que na hora seguinte sintonizasse a estação de rádio local, que uma música falaria pelo grupo aquilo que o grupo não havia conseguido dizer...

     Aquele que ia partir fechou as malas. O táxi o aguardava em frente ao portão. Antes, porém, na hora indicada, ligou o rádio. Ouviu atento uma música que havia sido lançada havia pouco tempo, e que a ele havia sido dedicada por aquele grupo de amigos.


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR)
("You've got a friend" - James Taylor/Carole King)

     "You've got a friend", James Taylor...

     Não conteve a emoção, engasgou, chorou diante do rádio, olhou pela última vez a casa onde vivera naqueles últimos meses, e partiu. Nunca mais voltou, nunca mais foi o mesmo. 


("Antes de partir" - Aeroporto de Los Angeles, 1974 - foto: arq. pessoal)


     No avião, antes da decolagem, o passageiro ao lado daquele jovem que estava partindo perguntou-lhe: “and now, where are you going boy?*” Muitos anos passados, aquele mesmo jovem que havia partido refez para si aquela pergunta: “and then, where has that young boy gone?**”... e percebeu que não sabia a resposta...

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* tradução: "e aí, para onde você vai, garoto?"

** tradução: "e então, para onde aquele garoto foi?" 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

SARAH, BILLIE E ELLA: A SANTÍSSIMA TRINDADE DO JAZZ

 


Billie |Holiday, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan
http://opiniaoenoticia.com.br/opiniao/as-divas-do-jazz-e-da-cancao-americana/

     O meu amigo Luiz Carlos enviou-me uma mensagem indicando a voz, a interpretação e as gravações de Ella Fitzgerald para serem ouvidas. Ele diz que a Ella lhe faz companhia nas horas de tranquilidade. E a mensagem veio acompanhada da gravação de "Summertime" que a Ella fez com o Louis Armstrong. Achei perfeita a sugestão. "Summertime" faz com que a gente fique sentado em uma cadeira de balanço na varanda de uma casa do sul dos Estados Unidos, olhando uma extensa plantação de algodão que se perde na distância - como nos tempos da escravidão.



Ella Fitzgerald

https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/04/1878386-no-centenario-de-ella-fitzgerald-relembre-shows-da-cantora-no-brasil.shtml


     Gosto da Ella. É uma das maiores cantoras de todos os tempos - "uma das". Ela gravou, em 1956, um disco muito bonito com o Louis Armstrong: "Ella and Louis". Nele foram gravadas músicas do naipe de "April in Paris" e "The nearness of you". Este foi o primeiro de uma sequência de três discos que os dois gravaram juntos. Os outros foram "Ella and Louis again" (1957) e "Porgy and Bess" (1959). "Summertime" está no terceiro deles, o "Porgy and Bess". Gosto muito do primeiro deles. Mas gosto de lembrar que a Ella também era apaixonada por música brasileira. Tanto que, em 81, ela gravou um disco inteiro dedicado à Bossa Nova: "Ella abraça Jobim". É um disco bonito e bem brasileiro, a começar pela capa: as ondas formadas no mosaico de pedras das calçadas de Copacabana, no Rio de Janeiro.



Capa do disco "Ella abraça Jobim"

https://www.vagalume.com.br/ella-fitzgerald/discografia/ella-abraca-jobim.html


     Para mim há uma santíssima trindade negra de cantoras norte-americanas: Sarah Vaughan, Billie Holiday e Ella Fitzgerald. Recentemente, inseri nesse grupo, na forma de "amém", a Nina Simone. Mas a Nina, na minha avaliação, fica um pouco aquém das demais. Isso porque ela tem um perfil um tanto quanto, digamos, "combativo". E eu, como tenho uma certa preferência pelos perfis femininos mais frágeis e dóceis, deixo-a um pouco aquém das demais. No entanto, a interpretação que a Nina faz de "Wild is the wind" e de "I put a spell on you" dão a ela a credencial para estar próxima (um pouco atrás) das outras três.

     Das três, a Sarah Vaughan é a minha mais querida. Gosto de tudo o que ela gravou, em especial dos seus três discos de músicas brasileiras. Em 1970, quando esteve no Brasil pela primeira vez, ela participou de um programa na extinta TV Tupi, cantando "The shadow of your smile" com o Wilson Simonal. A gravação dessa música em estúdio, por razões afetivas, é para mim "a cereja do bolo" em sua obra (bom... mas tem também uma segunda cereja: "Misty"... e uma terceira: "Someone to watch over me"... e uma quarta...)


CLIQUE NA SETA PARA OUVIR


Sarah Vaughan - "The shadow of your smile" (Mandel/Webster)

https://www.youtube.com/watch?v=muH8jXJ-FdU

     A Billie foi, para mim, de uma garra e de uma fragilidade doídas. A voz sofrida, como sofrida foi sua vida, faz com que eu sempre queira, de alguma forma, quando a ouço, ampará-la. No fundo, no fundo, é ela quem sempre acaba me amparando quando eu a ouço cantar "I'll be seeing you" ou "You've changed".



Billie Holiday

https://musica.uol.com.br/noticias/efe/2015/04/07/billie-holiday-a-voz-mais-especial-do-jazz-completaria-cem-anos-hoje.htm

 

     Se o Vinícius de Moraes encontrou no Tom, no Baden e no Carlos Lyra a sua santíssima trindade, com o Toquinho no "amém", conforme ele mesmo dizia, eu tenho também o amparo constante da minha "santíssima trindade": Sarah, Billie e Ella, nessa ordem - e com a Nina no "amém". 

     Com isso tudo quero mesmo é dizer que o Luiz Carlos é um bom sujeito: "diga-me com quem andas que eu te direi quem és". Se ele anda com a Ella, mesmo que seja somente nas horas de tranquilidade, ele é um  bom sujeito: está comprovado, portanto, que o Luiz Carlos merece a nossa consideração!

sábado, 10 de outubro de 2020

ROBERTO GOYENECHE - "EL POLACO"

 

(Fonte: http://club.doctissimo.fr/volver4/tango-peinture-151705/photo/willem-haenraets-tango-5103056.html)


"La vida és un tango"*


     Para que eu aprendesse a gostar de tango foi necessário tempo. Tempo de vida. Anos. Não, não pense você, meu caro amigo, que eu o considerava um gênero ruim: ultrapassado, talvez. É que minha sensibilidade não estava desenvolvida o suficiente para ouvir atentamente o som do bandoneón, ou para entender as verdades contidas nas letras passionais, trágicas e sofridas que são próprias do tango - e que traduzem muito da realidade de nossa existência. Na verdade, até há pouco eu não estava amadurecido para poder compreender o quanto o tango é atual e próprio da natureza humana.


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR)
(Roberto Goyeneche - "El último café", de Julio Sosa)

 

     No entanto isso ainda não bastou para que eu pudesse reconhecer meus amores pelo tango.

     Foi necessário também que eu descobrisse o Roberto Goyeneche - conhecido como "El Polaco" -; que eu me apaixonasse pelas suas interpretações e pelo seu jeito de sutilmente pronunciar inclusive os pontos e as vírgulas daquilo que canta (inclusive reconhecido na letra de "Garganta con Arena"**). Quando ele solta a voz e diz o tango, expondo-se por inteiro, ele consegue fazer a fusão da fantasia com a realidade. E percebo que eu também me sinto assim, de alma exposta entre realidade e ficção quando o ouço cantar. Por isso acredito que o tango seja, de fato, uma das linguagens da alma!

     Ao interpretar um tango o Goyeneche escancara a autenticidade das paixões que aprisionamos em algum dos nossos próprios labirintos.

( Capa da biografia de Goyeneche - fonte: http://www.anobii.com/books/El_Polaco,_la_vida_de_Roberto_Goyeneche/01583de33cb0cf8b39)

     Se gosto da maneira que o Goyeneche canta e representa, é porque posso ir além da convencionalidade de gestos, de palavras geometricamente ditas e de sorrisos exatos nos momentos oportunos. Se gosto das interpretações do Goyeneche, é porque aprendi que posso me deixar ser naturalmente passional em relação às pessoas e às coisas de que gosto... Ou, do contrário, a racionalidade excessiva, desprovida de um mínimo de paixão, pode acabar me matando.


El Último Café (Julio Sosa)

Llega tu recuerdo en torbellino,
Vuelve en el otoño a atardecer
Miro la garúa, y mientras miro,
Gira la cuchara de café.

Del último café
Que tus labios con frío,
Pidieron esa vez
Con la voz de un suspiro.

Recuerdo tu desdén,
Te evoco sin razón,
Te escucho sin que estés.
"Lo nuestro terminó",
Dijiste en un adiós
De azúcar y de hiel...

¡Lo mismo que el café,
Que el amor, que el olvido!
Que el vértigo final
De un rencor sin porqué...

Y allí, con tu impiedad,
Me vi morir de pie,
Medí tu vanidad
Y entonces comprendí mi soledad
Sin para qué...

Llovía y te ofrecí, ¡el último café
O Último Café

Suas lembranças chegam a mim feito um turbilhão,
E me levam para o outono a entardecer
Olho a garoa, e enquanto isso,
Mexe a colher de café.

O último café
Que seus lábios com frio
Pediram daquela vez
Com a voz de um suspiro.

Lembro-me de seu desdém,
Te evoco sem razão,
E te ouço sem que você esteja.
"O nosso terminou"
Disseste em um adeus
De açúcar e de fel ...

Assim como o café,
Que o amor, que o esquecimento!
Que a loucura final
De um rancor sem porquê ...

E ali, com sua impiedade,
Me vi morrer de pé,
Medi sua vaidade
E então eu compreendi minha solidão
Sem para quê ...

Chovia e eu te ofereci o último café!

_______________________________________ 
*"La vida és un tango" (Argentina, 1939) - filme dirigido por Manuel Romero

**"Garganta con arena" - tango de Cacho Castaña composto em homenagem a Roberto Goyeneche