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quarta-feira, 16 de setembro de 2020

CAPRICHO

 

Fongwei Liu - "Uma velha história" (2009)

https://peregrinacultural.wordpress.com/page/4/


"Risonhos sonhos sonharemos nós"

(Castro Alves)


CLIQUE NA SETA PARA OUVIR

Nara Leão - "Capricho" (Castro Alves/Francis Hime)
https://www.youtube.com/watch?v=EHFfMvMF7BY


     Outro dia o meu amigo Clóvis apresentou o poema "Canção", da Cecília Meireles, a um grupo de amigos.


Pus o meu sonho num navio

e o navio em cima do mar;

- depois, abri o mar com as mãos,

para o meu sonho naufragar 


(...)


     Sensibilizado ao lê-lo, o também meu amigo Luiz Carlos comentou:

     - Esse poema é muito bonito... Deveria ser musicado. Em música, ele corre mundo.

     Concordei. Afinal, ao se vestir de melodia, harmonia e ritmo, um poema ganha novos veículos de propagação e desprende-se do papel impresso. Musicado, ele pode transitar com maior facilidade pelas estações de rádio, pelos canais de televisão, viajar, ir mais longe... Ou não: tudo depende de quem o ouve ou de quem o lê.

     É por isso que, quando devidamente interpretado na leitura, o poema já é música. A palavra, quando atinge as experiências de vida daquele que a ouve ou que a lê, tem o poder de fazer despertar instintos adormecidos; quando reunida com outras palavras, formando frases, pinta e borda emoções, arrepios e sentimentos: as palavras irmanadas assim, formando frases, movem o mundo de quem procura sair do vácuo.

     Muitos poemas foram musicados e enriqueceram a música popular brasileira. Lembro-me agora de "Capricho", do Castro Alves, musicado por Francis Hime e gravado tanto pela Nara Leão quanto pelo Quarteto em Cy. Lembro-me também de "Memória", do Carlos Drummond de Andrade: musicado pelo baiano Alcyvando Luz e cantado pelo Quarteto em Cy, voou longe - ou melhor, ganhou a capacidade de fazer com que qualquer ouvinte possa voar longe... O Fagner não passou batido: musicou e gravou "Motivo", da Cecília Meirelles.


Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.


(...)


     Lembram-se da música "Canteiros", gravada também pelo Fagner? ("Quando penso em você, fecho os olhos de saudaaaade")? Vejam só de onde veio:


(...)

Quando penso no teu rosto,

fecho os olhos de saudades;

tenho visto muita coisa,

menos a felicidade.

Soltam-se os meus dedos tristes,

dos sonhos claros que invento.

Nem aquilo que imagino

já me dá contentamento.

(...)


Pois é. Foi inspirado nesses versos de "Marcha", da Cecília Meirelles, que nasceu "Canteiros" - e que deu uma baita confusão. Mas isso já é outro papo.


CAPRICHO

(Castro Alves)

 

Ai! quando

Brando

Vai o vento

Lento

 

À lua

Nua

Perpassar sutil;

 

E a estrela

Vela,

E sobra linfa

A ninfa

Suspira

Mira

O divinal perfil;

 

Num leito

Feito

De cheirosas

Rosas,

Risonhos

Sonhos

Sonharemos nós;

 

Revoltos,

Soltos

Os cabelos

Belos,

Vivace

A face,

Tremulante a voz

 

Cantos

E prantos

Que suspira

A lira,

A alfombra,

À sombra,

Encontrarei pra ti;

 

Celuta,

Escuta

De meu seio

O enleio...

Vem, linda,

Ainda

Há solidões aqui.

MEMÓRIA

(Carlos Drummond)

 

Amar o perdido

deixa confundido

este coração.

 

Nada pode o olvido

contra o sem sentido

apelo do Não.

 

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

 

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,

essas ficarão.

 

sábado, 12 de setembro de 2020

DOIDINHO VOLTA AO ENGENHO

 

"Doidinho" (1933) -capa- José Lins do Rego - Ed. Nova Fronteira - 27ª ed., 1984

     Hoje é sábado, quatro horas da tarde, e estou em casa. Acabei de ler, mais uma vez, "Doidinho".


CLIQUE NA SETA PARA OUVIR

Jacob do Bandolim - "Ingênuo"
https://www.youtube.coom/watch?v=IWk44WN3cIg

     "Doidinho" é o segundo livro do ciclo da cana de açúcar, de José Lins do Rego. Nesse livro, o menino Carlinhos deixa o engenho de seu avô, onde morava - o Santa Rosa -, para estudar em um internato em Itabaiana, PB.

     Em trinta e seis capítulos Zé Lins mostra o sofrimento, as angústias e o consequente amadurecimento de Carlinhos no convívio com os demais alunos do Colégio. Lá, entre os meninos,  ele é apenas mais um - e não o neto do Coronel Zé Paulinho, o senhor do engenho. No internato Carlinhos aprende a conviver com a repreensão, o castigo e a injustiça. Aprende também o sentido da solidariedade e do amor. Tem ideias de morte e de vingança. Sente tanta saudade do engenho do avô a ponto de fugir do colégio, tomar um trem e voltar para lá. No entanto, ao descer do trem, por não saber como sua fuga seria recebida no engenho, ficou receoso de chegar à casa-grande.

     Exatamente no momento em que terminei a leitura do livro senti no ar um cheiro de bolo. E como a leitura fez com que eu me desprendesse da sala onde eu me encontrava, pensei que aquele cheiro fosse fruto da minha imaginação; que minha imaginação havia me levado para um antigo engenho da época do império, mais precisamente para a cozinha de sua casa-grande, onde mãos de afeto faziam de um bolo um pedaço do coração, para ser servido com carinho em um café da tarde.

     Sentindo-me o próprio Carlinhos, desci do trem que me trouxera de volta ao Engenho Santa Rosa e fechei o meu livro. Cruzei a mata constituída pelos cômodos de minha casa, e fui até a cozinha. Lá encontrei minha companheira sorridente e orgulhosa, mostrando-me o bolo de cenoura com cobertura de chocolate, recém saído do forno, que ela havia feito para me agradar - e que já estava sobre a mesa para o nosso café da tarde.

Bolo de cenoura com chocolate - e café - Foto: arq. pessoal


     Pensei: "Será que o Carlinhos vai ser tão bem recebido, na casa-grande, quanto eu fui ao chegar na cozinha?"

     Não sei. Talvez "Banguê"* possa responder.



Uma das ilustrações em "Banguê" (Ed. José Olympio, 13ª ed., 1982)

_____________________ 

*"Banguê" (1934) - José Lins do Rego - 3º livro do ciclo da cana de acúcar



segunda-feira, 7 de setembro de 2020

D. PEDRO I E O CAUBOI VALENTÃO

 

D.Pedro I em detalhe de "Independência ou Morte", 1888, de Pedro Américo


     Recentemente reli a biografia do D. Pedro I escrita pela historiadora Isabel Lustosa(1). Dessa leitura fui construindo, sem querer, uma relação livre e despretensiosa do seu perfil psicológico com os reflexos dele produzidos no perfil geral do brasileiro.

     D. Pedro I foi um menino solto; foi um jovem independente e boêmio que se dedicava mais às atividades físicas que aos estudos. Preferia a vida sem as formalidades da corte. Tornou-se um imperador impulsivo e contraditório.

     Quando penso nele, a imagem que me vem é a de alguém que “não levava desaforo para casa”. Fico imaginando o imperador menino, solto no paço, inquieto, fugindo do palácio para brincar com os meninos do porto. Pelo que consta na literatura, D. Pedro I não "dava bola" para diferenças raciais nem tampouco para uma suposta inferioridade do negro – tanto que era contrário à escravidão. A esse respeito, inclusive, declarou: “Eu sei que o meu sangue é da mesma cor que o dos negros”(2).

     Imagino-o já adulto, às margens do Ipiranga, recebendo da Dna. Leopoldina uma mensagem na qual pede providências pelo Brasil: “o pomo está maduro; colha-o já, senão apodrece” – dizia a mensagem.

     Ao mesmo tempo, e não sei por quê, relaciono D. Pedro I com o Kid Morengueira - personagem de letra de música criado sob inspiração nos caubóis norte-americanos. Apesar de fictício, parece que tem o mesmo perfil heroico, destemido e “doidão” do brasileiro existente em D. Pedro I.


(CLIQUE NA SETA PARA ASSISTIR ANTES DE LER)
(Moreira da Silva - "O rei do gatilho", 1962)


O REI DO GATILHO
(Michael Gustav) 

'' O rei do gatilho, super bang-bang de Michael Gustav, com Kid Morangueira, o mais famoso pistoleiro de Wichitta.
Temido pelos bandidos, pois só atirava em nome da lei.
O rei do Gatilho.'' 

Começa o filme com o garoto me entregando 
um telegrama do Arizona, onde um bandido de lascar 
um bandoleiro transviado que era o bamba lá da zona 
e não deixava nem defunto descansar. 
Dizia urgente que eu seguisse em seu socorro. 
a diligencia do oeste neste dia ia levar 
vinte mil dólares do rancho Águia de Prata 
onde a mocinha costumava me encontrar 

''Venha urgente, pois estou morta de medo. Só tu poderás salvar-nos. 
Beijos da tua Mary.'' 

Botei na cinta dois revólveres que atiram 
sem que eu precise nem ao menos me coçar 
assobiei para um cavalo que passava do outro lado 
e com o bandido mascarado fui lutar. 
Meti o peito, nem dei bola prô xerife 
passei direto do saloon, fui me encostando no balcão 
com o chapéu em cima dos olhos nem dei conta 
de que o bandido me esparava a traição 

"-Cuidado Moreira-'' 

Era um índio meu amigo que sabia 
das intenções do bandoleiro contra mim 
e advertia seu amigo do perigo que corria 
devo-lhe a vida, mas isso não fica assim. 
A essa altura o cabaret em polvorosa 
já tinha um cheiro de cadáver se espalhando 
houve um suspense de matar o Hitchicock 
e em close-up prô bandido fui chegando. 
Parou o show e as bailarinas desmaiaram 
fugiram todos só ficando ele e eu 
ele atirou, eu atirei e nós trocamos tantos tiros 
que até hoje ninguém sabe quem morreu. 
Eu garanto que foi ele, ele garante que fui eu.
Só sei dizer que a mulher dele hoje é viúva 
que eu nunca fui de dar refresco ao inimigo 
como no filme bang-bang, bang-bang vale tudo 
o casamento da viúva foi comigo.

Tem um final, mas o final é meio impróprio e eu não digo. 
Volte na próxima semana se quiser ser meu amigo 
Eu de cowboy fico gaiato, mas não fujo do perigo


     O Kid Morengueira, em “O Rei do Gatilho”(3), ao receber um telegrama de uma frágil mocinha que lhe pedia socorro, “pegou” um cavalo que passava e foi ligeiro proteger uma diligência que transportaria uma grande soma em dinheiro. E, claro, foi também salvar a “mocinha”.

     Ao receberem uma notícia de consequências danosas, ambos deixaram fluir a impetuosidade do brasileiro, e, numa explosão de heroísmo, D. Pedro I e Kid Morengueira tomaram providências imediatas. D. Pedro I sacou a espada e bradou pela Independência do Brasil; Kid Morengueira “botou no cinto dois revólveres”, matou um bandido em duelo, salvou o dinheiro, e ainda se casou com a viúva.

     D. Pedro I era popular e querido aqui no Brasil. Tanto que, quando foi pressionado para voltar para Portugal, mandou avisar que daqui não sairia(4).


D.Pedro I em desfile de 7 de setembro com minhas amigas Marisas -postagem Eliane de Andrade no facebook

 
     O Kid Morengueira, mesmo com seu jeitão do caubói John Wayne(5) no personagem traçado no samba-de-breque, era também querido e admirado, tanto pela frágil mocinha quanto pelo seu amigo e parceiro – um índio.

Rio Bravo, John Wayne, 1959 Photo
John Wayne - fonte: http://www.allposters.com/-sp/Rio-Bravo-John-Wayne-1959-Posters_i9339038_.htm


     Tanto o D. Pedro I quanto o Kid Morengueira, um real outro fictício, com algumas similaridades e dessemelhanças, nas minhas fantasias traduzem bem o jeitão cordial do brasileiro – além de ilustrarem os valores e respeito que devem imperar nas relações entre todas as raças aqui no Brasil: D. Pedro I não acreditava na inferioridade do negro; Kid Morengueira era amigo de índio. São, por isso, perfis que representam a identidade do povo brasileiro.

____________________________ 
(1) LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006
(2) LUSTOSA, Isabel, obra citada, p. 129
(3) "O Rei do Gatilho" -  samba-de-breque de Michael Gustav, interpretado por Moreira da Silva
(4) Em 09/jan/1922 (dia do Fico) D. Pedro I disse: “se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto: diga ao povo que fico!” 
(5) John Wayne nome artístico de Marion Robert Morrison, ator norteamericano (1907 – 1979)

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

TERRA DAS PALMEIRAS

 

o pescador

"O pescador" (1925) - Tarsila do Amaral

https://www.todamateria.com.br/tarsila-do-amaral/


     TAIGUARA foi um cantor e compositor brasileiro. Filho de artistas, nasceu no Uruguai durante uma turnê de seus pais naquele país.


CLIQUE NA SETA PARA OUVIR

Vileta Lara e Robert Clay - "Terra das Palmeiras" (Taiguara)


     Taiguara concorreu em festivais de música e fez muito sucesso aqui no Brasil, nos anos 70, com uma série de gravações inesquecíveis: "Hoje", "Amanda", "Modinha", "Helena Helena", "Teu sonho não acabou", e muitas outras.

     Considerado símbolo da resistência durante os "anos de chumbo", esteve em exílio forçado na Inglaterra; e, depois de ter regressado ao Brasil, passou por um segundo período de exílio na Tanzânia e na Inglaterra, novamente. Durante o seu primeiro período de exílio, sonhando voltar ao Brasil, ele compôs "Terra das Palmeiras" e a gravou em um disco chamado "Ymira, Tayra, Ipy", em 1976.

     "Ymira, Tayra, Ipy" foi recolhido das lojas, pela censura, 72 horas após o seu lançamento. "Terra das Palmeiras", que fala de amor, de distância, de busca e de saudade, dialoga com a "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias.

     Se, na "Canção do Exílio", Gonçalves Dias pintou a natureza brasileira e idealizou uma pátria em busca de uma identidade, em "Terra das Palmeiras", torturado pela saudade, Taiguara comprometeu-se a reinventar um país que, aos seus olhos, havia perdido seu canto e suas cores.... um país que, com contornos verde-oliva, havia assumido uma certa coloração acinzentada.


"O Pescador" - Tarsila do Amaral (1925)


Canção do Exílio Gonçalves Dias 

 

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

 

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas tem mais flores,

Nossos bosques tem mais vida,

Nossa vida mais amores.

 

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o sabiá.

 

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar - sozinho, à noite -

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

 

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu’inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Terra das Palmeiras -Taiguara

 

Sonhada terra das palmeiras

Onde andará teu sabiá?

Terá ferida alguma asa?

Terá parado de cantar?

 

Sonhada terra das palmeiras

Como me dói meu coração

Como me mata o teu silêncio

Como estás só na escuridão

 

Ah! Minha amada amordaçada

De amor forçado a se calar

Meu peito guarda o sangue em pranto

Que ainda por ti, vou derramar

 

Ah! Minha amada amortalhada

Das mãos do mal vou te tirar

P'ra dançar danças de outras terras

E em outras línguas te acordar ...

E em outras línguas te acordar...

E de outras terras te acordar...

Amada minha te acordar...

Querida minha te acordar...

Em outras línguas te acordar

Ah,ah, ah,ah...