Neste blog publico textos a respeito de livros e artigos que leio, cenas do cotidiano que observo, pensamentos que tenho, e matérias que me fazem sentir que merecem ser relembradas ou relidas de tempos em tempos.
Nas difíceis horas de despedidas há sempre muita dificuldade para se dizer coisas simples, em especial quando há a noção de que o “até mais” significa “dificilmente uma outra vez...”.
Mas, há muitos anos, ainda na década de 70, depois de algum tempo em uma terra distante, o momento de voltar havia chegado.
No dia da partida, um grupo de amigos adolescentes foi se despedir daquele jovem que ia voltar para o seu país. Todos o abraçaram, apertaram suas mãos, disseram algumas palavras, e foram-se. Estranhamente, nenhum deles comentou a respeito do motivo da visita. Todos sabiam que uma fase se encerrava.
Minutos depois alguém daquele grupo deu um telefonema àquele que ia partir, pediu a ele que na hora seguinte sintonizasse a estação de rádio local, que uma música falaria pelo grupo aquilo que o grupo não havia conseguido dizer...
Aquele que ia partir fechou as malas. O táxi o aguardava em frente ao portão. Antes, porém, na hora indicada, ligou o rádio. Ouviu atento uma música que havia sido lançada havia pouco tempo, e que a ele havia sido dedicada por aquele grupo de amigos.
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("You've got a friend" - James Taylor/Carole King)
"You've got a friend", James Taylor... Não conteve a emoção, engasgou, chorou diante do rádio, olhou pela última vez a casa onde vivera naqueles últimos meses, e partiu. Nunca mais voltou, nunca mais foi o mesmo.
("Antes de partir" - Aeroporto de Los Angeles, 1974 - foto: arq. pessoal)
No avião, antes da decolagem, o passageiro ao lado daquele jovem que estava partindo perguntou-lhe: “and now, where are you going boy?*” Muitos anos passados, aquele mesmo jovem que havia partido refez para si aquela pergunta: “and then, where has that young boy gone?**”... e percebeu que não sabia a resposta...
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* tradução: "e aí, para onde você vai, garoto?"
** tradução: "e então, para onde aquele garoto foi?"
O meu amigo Luiz Carlos enviou-me uma mensagem indicando a voz, a interpretação e as gravações de Ella Fitzgerald para serem ouvidas. Ele diz que a Ella lhe faz companhia nas horas de tranquilidade. E a mensagem veio acompanhada da gravação de "Summertime" que a Ella fez com o Louis Armstrong. Achei perfeita a sugestão. "Summertime" faz com que a gente fique sentado em uma cadeira de balanço na varanda de uma casa do sul dos Estados Unidos, olhando uma extensa plantação de algodão que se perde na distância - como nos tempos da escravidão.
Gosto da Ella. É uma das maiores cantoras de todos os tempos - "uma das". Ela gravou, em 1956, um disco muito bonito com o Louis Armstrong: "Ella and Louis". Nele foram gravadas músicas do naipe de "April in Paris" e "The nearness of you". Este foi o primeiro de uma sequência de três discos que os dois gravaram juntos. Os outros foram "Ella and Louis again" (1957) e "Porgy and Bess" (1959). "Summertime" está no terceiro deles, o "Porgy and Bess". Gosto muito do primeiro deles. Mas gosto de lembrar que a Ella também era apaixonada por música brasileira. Tanto que, em 81, ela gravou um disco inteiro dedicado à Bossa Nova: "Ella abraça Jobim". É um disco bonito e bem brasileiro, a começar pela capa: as ondas formadas no mosaico de pedras das calçadas de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Para mim há uma santíssima trindade negra de cantoras norte-americanas: Sarah Vaughan, Billie Holiday e Ella Fitzgerald. Recentemente, inseri nesse grupo, na forma de "amém", a Nina Simone. Mas a Nina, na minha avaliação, fica um pouco aquém das demais. Isso porque ela tem um perfil um tanto quanto, digamos, "combativo". E eu, como tenho uma certa preferência pelos perfis femininos mais frágeis e dóceis, deixo-a um pouco aquém das demais. No entanto, a interpretação que a Nina faz de "Wild is the wind" e de "I put a spell on you" dão a ela a credencial para estar próxima (um pouco atrás) das outras três.
Das três, a Sarah Vaughan é a minha mais querida. Gosto de tudo o que ela gravou, em especial dos seus três discos de músicas brasileiras. Em 1970, quando esteve no Brasil pela primeira vez, ela participou de um programa na extinta TV Tupi, cantando "The shadow of your smile" com o Wilson Simonal. A gravação dessa música em estúdio, por razões afetivas, é para mim "a cereja do bolo" em sua obra (bom... mas tem também uma segunda cereja: "Misty"... e uma terceira: "Someone to watch over me"... e uma quarta...)
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Sarah Vaughan - "The shadow of your smile" (Mandel/Webster)
https://www.youtube.com/watch?v=muH8jXJ-FdU
A Billie foi, para mim, de uma garra e de uma fragilidade doídas. A voz sofrida, como sofrida foi sua vida, faz com que eu sempre queira, de alguma forma, quando a ouço, ampará-la. No fundo, no fundo, é ela quem sempre acaba me amparando quando eu a ouço cantar "I'll be seeing you" ou "You've changed".
Se o Vinícius de Moraes encontrou no Tom, no Baden e no Carlos Lyra a sua santíssima trindade, com o Toquinho no "amém", conforme ele mesmo dizia, eu tenho também o amparo constante da minha "santíssima trindade": Sarah, Billie e Ella, nessa ordem - e com a Nina no "amém".
Com isso tudo quero mesmo é dizer que o Luiz Carlos é um bom sujeito: "diga-me com quem andas que eu te direi quem és". Se ele anda com a Ella, mesmo que seja somente nas horas de tranquilidade, ele é um bom sujeito: está comprovado, portanto, que o Luiz Carlos merece a nossa consideração!
Para que eu aprendesse a gostar de tango foi necessário tempo. Tempo de vida. Anos. Não, não pense você, meu caro amigo, que eu o considerava um gênero ruim: ultrapassado, talvez. É que minha sensibilidade não estava desenvolvida o suficiente para ouvir atentamente o som do bandoneón, ou para entender as verdades contidas nas letras passionais, trágicas e sofridas que são próprias do tango - e que traduzem muito da realidade de nossa existência. Na verdade, até há pouco eu não estava amadurecido para poder compreender o quanto o tango é atual e próprio da natureza humana.
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(Roberto Goyeneche - "El último café", de Julio Sosa)
No entanto isso ainda não bastou para que eu pudesse reconhecer meus amores pelo tango.
Foi necessário também que eu descobrisse o Roberto Goyeneche - conhecido como "El Polaco" -; que eu me apaixonasse pelas suas interpretações e pelo seu jeito de sutilmente pronunciar inclusive os pontos e as vírgulas daquilo que canta (inclusive reconhecido na letra de "Garganta con Arena"**). Quando ele solta a voz e diz o tango, expondo-se por inteiro, ele consegue fazer a fusão da fantasia com a realidade. E percebo que eu também me sinto assim, de alma exposta entre realidade e ficção quando o ouço cantar. Por isso acredito que o tango seja, de fato, uma das linguagens da alma!
Ao interpretar um tango o Goyeneche escancara a autenticidade das paixões que aprisionamos em algum dos nossos próprios labirintos.
( Capa da biografia de Goyeneche - fonte: http://www.anobii.com/books/El_Polaco,_la_vida_de_Roberto_Goyeneche/01583de33cb0cf8b39)
Se gosto da maneira que o Goyeneche canta e representa, é porque posso ir além da convencionalidade de gestos, de palavras geometricamente ditas e de sorrisos exatos nos momentos oportunos. Se gosto das interpretações do Goyeneche, é porque aprendi que posso me deixar ser naturalmente passional em relação às pessoas e às coisas de que gosto... Ou, do contrário, a racionalidade excessiva, desprovida de um mínimo de paixão, pode acabar me matando.
El Último Café (Julio Sosa)
Llega tu recuerdo en torbellino,
Vuelve en el otoño a atardecer
Miro la garúa, y mientras miro,
Gira la cuchara de café.
Del último café
Que tus labios con frío,
Pidieron esa vez
Con la voz de un suspiro.
Recuerdo tu desdén,
Te evoco sin razón,
Te escucho sin que estés.
"Lo nuestro terminó",
Dijiste en un adiós
De azúcar y de hiel...
¡Lo mismo que el café,
Que el amor, que el olvido!
Que el vértigo final
De un rencor sin porqué...
Y allí, con tu impiedad,
Me vi morir de pie,
Medí tu vanidad
Y entonces comprendí mi soledad
Sin para qué...
Llovía y te ofrecí, ¡el último café
O Último Café
Suas lembranças chegam a mim feito um turbilhão,
E me levam para o outono a entardecer
Olho a garoa, e enquanto isso,
Mexe a colher de café.
O último café
Que seus lábios com frio
Pediram daquela vez
Com a voz de um suspiro.
Lembro-me de seu desdém,
Te evoco sem razão,
E te ouço sem que você esteja.
"O nosso terminou"
Disseste em um adeus
De açúcar e de fel ...
Assim como o café,
Que o amor, que o esquecimento!
Que a loucura final
De um rancor sem porquê ...
E ali, com sua impiedade,
Me vi morrer de pé,
Medi sua vaidade
E então eu compreendi minha solidão
Sem para quê ...
Chovia e eu te ofereci o último café!
_______________________________________ *"La vida és un tango" (Argentina, 1939) - filme dirigido por Manuel Romero
**"Garganta con arena" - tango de Cacho Castaña composto em homenagem a Roberto Goyeneche
Enchentes, terremotos, agentes infecciosos, guerras e regimes totalitários são responsáveis por muitas mortes em todos os cantos do mundo. Mas não só de pessoas.
O registro do pensamento do homem - que, desde Gutenberg*, tem sido transmitido e mantido por livros - de tempos em tempos também foi objeto de destruição. Houve um tempo, aqui no Brasil, em que pensar, debater, questionar e manifestar o conteúdo do pensamento eram exercícios vigiados, passíveis de punição. Por que será que ainda hoje, aqui no nosso país, padecemos da falta de lideranças políticas dignas de respeito e admiração? A perseguição de propagadores de ideias não alinhadas ao convencional de um determinado tempo promove uma perda imediata; mas a restrição da liberdade de expressão produz efeitos que afetam muitas gerações. O motivo para que esse absurdo seja sustentado é muito variável: destruição de aspectos culturais de uma nação, como ocorreu durante a colonização da América, quando muitos dos manuscritos maias e astecas foram destruídos (1560); perseguição religiosa, como ocorreu com as traduções da Bíblia feitas por Martinho Lutero; "combustível" de incêndios, como ocorreu em 1813 com a queima de livros da Biblioteca do Congresso para incendiar o Capitólio dos EUA, feita pelos ingleses durante a Batalha de Washington; destruição de uma ideologia, como aconteceu na União Soviética, nos anos 20, para combater ideologia ocidental, e na Alemanha nazista, em 1933, com a chegada de Hitler ao poder.
Na América do Sul, em 1973, a ditadura chilena queimou centenas de livros como forma de censura.
O Brasil também foi vítima desse absurdo. Em novembro de 1937 a ditadura do Estado Novo incinerou, na presença de centenas de pessoas em praça pública, uma grande quantidade de livros ditos subversivos. Nos dias anteriores, nas livrarias da cidade de Salvador, os livros da autoria de Jorge Amado e de outros autores que eram considerados, conforme se dizia à época, "simpatizantes do credo vermelho", haviam sido apreendidos. De Jorge Amado, foram incinerados:
888 exemplares de Capitães da Areia;
232 exemplares de Mar Morto;
89 exemplares de Cacau;
93 exemplares de Suor;
267 exemplares de Jubiabá;
214 exemplares de País do Carnaval.
E não foram somente livros de Jorge Amado: José Lins do Rego também entrou na dança. De sua autoria foram apreendidos e queimados:
E, como se as liberdades expressas na Constituição Federal de 1946 não tivessem servido para nada, o país voltou a perseguir pensadores - e livros. Com a publicação da Lei 1050/67, a censura no Brasil foi (re)instituída. E, depois, o Decreto-Lei 1077 de 26 de janeiro de 1970, deu a ela mais força:
Art. 1º - Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação.
Art. 2º - Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior.
Parágrafo único -O Ministro da Justiça fixará, por meio de portaria, o modo e a forma da verificação prevista neste artigo.
Art. 3º - Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares.
Mas, qual o significado de "moral e bons costumes"? Eu, angustiado por natureza, fico pensando nessas idas e vindas da história. Com tantas fake news circulando nas mídias sociais, com tanta notícia comprada, direcionada, manipulada, um mínimo de consciência crítica e de bom senso me faz acreditar que o significado de "moral" e "bons costumes" não pode ser o resultado de qualquer imposição que possa levar à proibição do livre exercício de pensamento e de sua expressão. Outro dia li que Heinrich Heine (1797-1856), poeta alemão, em seu tempo, preocupado com o que andava lendo, pensando e observando, acabou por manifestar o seu temor: "Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas". Eu, que olho para o céu e enxergo nuvens que talvez nem existam, acrescento aos temores do Heirich Heine os meus próprios: "restrições chegam a conta-gotas para serem servidas, depois, em caldeirões de agentes tóxicos".
- "Oh, meu Deus", raciocino, "livrai-me desses pensamentos! Vivemos outros tempos!" - "É, mas as idas e vindas da história..." - ouço, do silêncio. E concluo: - "Chega! Sai Satanás! Cada besteira...!"