(escrito em 05/janeiro/2013)
(Capa do livro "Rabo de Foguete- os anos de exílio" - fonte: americanas.com.br)
Fui à livraria do shopping no último final de semana do ano. Na seção de biografias folheei "Rabo de Foguete"(1) - livro do Ferreira Gullar no qual ele conta como foram seus anos de exílio. Enquanto aguardava minha filha, que estava em outra loja, lia um dos capítulos no qual o Gullar descreve, dentre outras coisas, as vezes em que esteve com Vinícius de Moraes na primeira metade dos anos 70, em Buenos Aires. Quis ler o capítulo inteiro ali mas, chamado pela minha filha, descemos para uma cafeteria. Entre um café e outro, fiquei pensando em um daqueles encontros Gullar/Vinícius, e no que eles poderiam ter conversado. O Gullar estava na Argentina por força do destino - e por força do "poder" -, enquanto que o Vinícius fazia apresentações musicais na cidade - com o Toquinho e Maria Creuza. E nessa época eu aqui, como tantos outros ingênuos, sonhava apenas em passar uma "Tarde em Itapuã".
Voltei do shopping e, em casa, pela internet, encomendei o livro em um sebo. Ansioso pela sua chegada, guardei a sensação de que estava por receber a visita do Gullar, e que teríamos uma conversa tal qual as que ele havia tido com o Vinícius.
Dois dias depois, pelo correio, o livro chegou em casa. Sem necessidade disso, mas involuntariamente assim me colocando, encolhi-me na minha escrivaninha para lê-lo. A sensação era a de estar lendo clandestinamente, nos "anos de chumbo", o "Manifesto Comunista" - tal foi o envolvimento que tive com a leitura. Com o Gullar mudei de apartamento no Rio; vivi clandestinamente na casa de amigos; viajei para a antiga União Soviética; conheci as pessoas de seu relacionamento; voltei para a América do Sul dos anos 70 e acompanhei, nas ruas e pelo rádio, a queda do governo Allende - no Chile. Por fim, após uma difícil passagem pelo Peru, passei com ele pela Argentina e de lá regressamos ao Brasil - onde, antes de sorrirmos ao som de "O bêbado e a equilibrista", fomos submetidos a diversos interrogatórios.
Minha escrivaninha fica em meu quarto, ao lado de uma porta de vidro que dá para uma sacada, no nono andar de um edifício. Dali, costumo olhar para fora e ver os edifícios da cidade, as luzes dos apartamentos, e a escuridão da noite. Tendo terminado a leitura do livro fiquei olhando para fora e imaginando o que estaria sendo conversado debaixo de cada luzinha que via nos edifícios vizinhos ao meu. Esses pensamentos, somados à leitura que havia terminado, me remeteram à difícil trajetória de vida dos muitos brasileiros exilados. Quanta gente precisou deixar de lado toda a família, trabalho, amigos, "apagar as luzes de casa" e partir para lugares desconhecidos para sobreviverem anonimamente! Quanto perdemos com essa "página infeliz da nossa história", como dizia o Chico. É triste a memória desse tempo!
("Minha escrivaninha fica ao lado de uma porta de vidro que dá para uma sacada" - foto: arq. pessoal)
Essas imagens de gente conversando sobre o país de origem, estando longe dele - no caso, e em especial, na condição de exilado em que se encontrava o Gullar - me despertam para muitas figuras de imaginação. Uma conversa nessas circunstâncias deixa a ideia de confidencialidade e cumplicidade - mas também de idealismo e amor à pátria. Mesmo porque, na Argentina, no Chile, no Uruguai e no Brasil dos anos 70, falar abertamente a respeito de política era prestar uma declaração de lucidez - o que era muito perigoso, naquele tempo.
Depois dessa leitura, as crônicas do Ferreira Gullar na "Folha de São Paulo" passaram a ter um maior significado e importância para mim - assim como seus outros livros, que passo agora a procurar.
Só sei que o ano de 2012 terminou, e levei dele a sensação fantasiosa de ter feito um novo amigo. É interessante isso: mesmo que a gente não saiba, está constantemente nascendo para alguém. E o Ferreira Gullar, aos 82 anos, nasceu para mim depois que li, no final do ano, o livro em que ele conta as memórias de sua vida de exilado: "Rabo de Foguete - os anos de exílio".
("A volta dos exilados políticos: trecho da minissérie 'Queridos Amigos'" - de Maria Adelaide Amaral - TV Globo, 2008 - música: "O Bêbado e a Equilibrista")
(1) Gullar, Ferreira. 1930. Rabo de Foguete - os anos de exílio. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 1998
Nenhum comentário:
Postar um comentário