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terça-feira, 3 de outubro de 2023

"EU (NÃO) SOU O MENINO DELA"

 

"Cenoura, tomate, alface, beterraba, cebola, pepino... mamão, banana e melão... carnes... arroz, ovos, fubá, caldo de carne e de galinha... Veja, álcool, sabão em pó, detergente, sapólio, bombril, saco de lixo, lustra móveis, água sanitária, removedor". Com essa lista no bolso, e com todas as horas de uma manhã à minha disposição, fui às compras em um supermercado.


    Empurrando um carrinho, fiz minha primeira parada na seção de frutas e legumes. Comecei pelos mamões - que precisavam de mais uns dois ou três dias para poderem ser consumidos: escolhi dois. O melão veio em seguida: selecionei um daqueles envolvidos em uma redinha vermelha de plástico - que, dizem, são os mais doces: e são, de fato. Da seção de legumes e frutas fui às carnes, e dali às demais seções.

    Na seção de bolachas procurei a minha preferida: uma bolacha feita com grãos de gergelim, que é apresentada em uma embalagem de papel verde brilhante. Nos chocolates examinei as diferentes ofertas: chocolate ao leite, chocolate com amendoim, chocolate amargo, meio amargo, sonho de valsa, chocolate recheado com uva passa e castanhas do Pará... Eu, que adoro chocolate amargo, 60 ou 70% cacau, caí agora nas graças do "Bis Xtra Black": uma delícia. Peguei uma caixinha.

    Depois fui aos congelados, onde estão as lasanhas à bolonhesa... Examinei o balcão de queijos... parmesão, gorgonzola... Os vinhos, no supermercado, não são muito convidativos: são muito caros. Ainda assim passeei por entre eles, na esperança de encontrar alguma promoção... Mas, nada: nenhum milagre.

    Em seguida dirigi-me à seção de azeites. Como gosto dessa seção! Passei pelos portugueses, pelos espanhóis, italianos, argentinos... Quantas embalagens lindas! Lembrei-me de que havia um azeite espanhol enlatado, o "Carbonell", que trazia em sua embalagem, de cor predominantemente vermelha, uma senhora sentada à sombra de uma oliveira... Procurei por esse azeite e lá estava ele! Fiquei olhando a embalagem, pensando nas oliveiras, imaginando aquela senhora que permanecia, horas, anos, décadas, presa na embalagem de lata, colhendo azeitonas, ouvindo pássaros... a mesma postura, a mesma face...

https://www.sitemercado.com.br/kingfood/sao-paulo-loja-mooca-mooca-rua-marina-crespi/produto/azeite-de-oliva-carbonell-tradicional-lata-200ml

    Não consegui passar de forma indiferente pelos sabonetes. Selecionei alguns para, simplesmente, segurar em minhas mãos e sentir o seu cheiro. Ali mesmo, naquela seção, atendi aos impulsos de uma de minhas manias e parei diante dos cremes dentais - uma centena de caixinhas maravilhosas. Procurei por novos produtos, li as orientações impressas nas embalagens, todas elas afirmando o poder de sedução de um sorriso brilhante...

    A quantidade de produtos expostos nos supermercados é tão grande, e geralmente eles estão tão bem dispostos, enfileirados, que sempre fico parado diante das gôndolas me sentindo um gerente de seção, um pesquisador, olhando aquelas embalagens, lendo as informações nelas trazidas, examinando e descobrindo tudo - mesmo que não haja, na seção específica, qualquer produto relacionado na minha lista de compras.

    Por fim, depois de ter passeado por tantas embalagens coloridas, depois de ter sentido tantos perfumes, depois de ter lido tantos cartazes promocionais, e com o carrinho cheio de produtos selecionados, fui à procura de um caixa menos movimentado para efetuar o pagamento de minha compra.

    Ao me postar atrás de uma senhora que conduzia um carrinho um tanto quanto vazio, ouvi a funcionária do caixa dirigir a mim a seguinte pergunta: "O senhor tem no carrinho vinte itens?" Maravilhado com tudo o que o nosso país é capaz de produzir - mas ainda com tanta gente impossibilitada de se alimentar bem -, e desatento ao objetivo final da pergunta, respondi a ela que não havia contado quantos itens estavam no meu carrinho; que certamente havia ali muito mais do que vinte; mas que poderia fazer a contagem se ela assim o desejasse. Foi então que uma senhora à minha frente informou-me que aquele caixa atendia somente clientes com até 20 itens a serem pagos. Assim orientado, e pedindo desculpas por ter me postado em  fila indevida, saí a procura de um outro caixa. Logo ao lado percebi um casal que havia terminado de embalar os produtos escolhidos, pronto para realizar o pagamento. Contudo, por motivos que me eram desconhecidos, tanto o casal quanto a funcionária do caixa, com cara de mal humorados, olhavam um para o outro sem nada dizerem. Fiquei ali por alguns instantes, até ouvir a funcionária do caixa dirigir seu olhar para mim e dizer: "o caixa está parado...". E ao final da informação utilizou a palavra "amor" na função de vocativo - pelo menos foi o que pensei ter ouvido. Entendi, então, que ela queria me dizer que seria bom que eu não ficasse ali aguardando, pois a espera poderia ser longa. Ao tomar conhecimento do problema, disse a ela que não me incomodava com a demora, mas que estava muito agradecido por ela ter se dirigido a mim daquela forma tão carinhosa: "amor". "Pra quê?" A moça, enfurecida, olhou para mim e para o casal ali ao lado dela, e esclareceu que não havia me chamado de "amor", mas sim de "moço". E eu, nos meus 65 anos de idade, não pude deixar de dizer a ela que a opção de me chamar de "moço", ao invés de "amor", agradava-me muito mais. Na sequência, ouvindo risos do casal que ali estava, saí à procura de um outro caixa.

Os Mutantes - "A minha menina" (Jorge Ben)

https://www.youtube.com/watch?v=EfHPjZSlOp8

    Não posso negar que gosto de ir ao supermercado. A cada vez que vou às compras aprendo muito e trago muitas histórias. Mas, pensando na atendente do caixa, creio que ela não foi verdadeira ao me chamar de "moço". Talvez ela tivesse querido, simplesmente, ser simpática. Em casa, ao chegar, depois de ter acomodado as compras nos armários da cozinha, olhei-me no espelho e fiquei pensando: "não, definitivamente não... minhas rugas, uma pinta que começa a surgir na no meu rosto, minha calvície, os cabelos brancos em minhas sobrancelhas atestam que, definitivamente, 'moço' já não sou...". A atendente de caixa ao dirigir a palavra a mim, chamando-me de "moço" (ou "amor"), não me convenceu. Contudo, aqui entre nós, admito que gostei de ambas as palavras que poderiam ter sido empregadas como vocativo: a que ela, de fato, verbalizou, e a outra, que só os ouvidos do meu coração conseguiram ouvir. 


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