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domingo, 26 de abril de 2020

"O FADO", DE JOSÉ MALHOA E DO POVO PORTUGUÊS


"O Fado" (1910, José Malhoa) - Foto: arq. pessoal

     Em 1910, para retratar a boemia e a marginalidade portuguesas da época, José Malhoa* pintou um quadro ao qual deu o nome de "O Fado"**. Nesse seu trabalho, o artista mostra o ambiente interno de uma tasca portuguesa. Nela, um fadista com sua guitarra, em um banco de madeira, canta para uma mulher que está sentada em uma cadeira, com um cigarro entre os dedos de sua mão direita e com a perna esquerda pousada sobre o banco no qual o fadista está sentado. Com o cotovelo do braço esquerdo sobre a mesa a mulher sustenta sua cabeça com a palma da mão, e tem a face voltada para o fadista. Com ele, ela parece estabelecer uma comunicação de perfeita sintonia e cumplicidade: cantando, ele expõe o seu fado; ela, inspirada pelo canto que ouve, parece que se derrama em pensamentos melancólicos - como melancólicas são as histórias narradas nas letras dos fados.     

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Amália Rodrigues - "Fado Malhoa"
https://www.youtube.com/watch?v=toe-KBYP7N4



     Amâncio, um famoso fadista*** na época, e uma mulher de má reputação que ficou conhecida como Adelaide da Facada (porque tinha no rosto uma cicatriz), foram modelos e inspiração para o artista.

     Por intermédio da criatividade portuguesa, a obra artística até ganhou vida. Em uma curta fantasia****, a fadista Amália Rodrigues, observando o quadro, "entra" nele, como se ela mesma fosse a Adelaide da Facada, levanta-se da cadeira, e canta um fado: o "Fado Malhoa". 



Fado Malhoa
(José Galhardo/Frederico Valério)

Alguém que Deus já lá tem, pintor consagrado
Que foi bem grande e nos doi já ser do passado
Pintou numa tela com arte e com vida
A trova mais bela da terra mais querida

Subiu a um quarto que viu à luz do petróleo
E fez o mais português dos quadros a óleo
Um Zé de Samarra, com a amante a seu lado
Com os dedos agarra, percorre a guitarra
E ali vê-se o fado

Faz rir a ideia de ouvir com os olhos, senhores
Fará, mas não p'ra quem já o viu mas em cores
Há vozes da Alfama naquela pintura
E a banza derrama canções de amargura

Dali vos digo que ouvi a voz que se esmera
Boçal dum Faia banal, cantando a Severa
Aquilo é bairrista, aquilo é Lisboa
Boémia e fadista aquilo é de artista
Aquilo é Malhoa
Aquilo é bairrista, aquilo é Lisboa
Boémia e fadista aquilo é de artista
E aquilo é Malhoa

     Sempre gostei desse quadro, e muitas vezes me imaginei conhecendo-o de perto. Ele tornou-se um clássico: tanto que é reproduzido em muitos trabalhos em azulejos trabalhados em azul, comuns no país. 

"O Fado" - trabalho em azulejo - Foto: arq. pessoal

     Os azulejos pintados são uma marca da cultura portuguesa. Tanto que há, no país, muitos edifícios públicos e igrejas (inclusive um museu - o Museu do Azulejo, em Lisboa) decorados com trabalhos feitos em azulejo, que contam a história de seu povo, de suas lutas e de seus personagens.

     No final do ano passado, em viagem a Portugal, eu e minha mulher fomos caminhar pelo bairro de Alfama, em Lisboa. Em uma de suas ruelas encontramos uma tasca deliciosamente aconchegante: as mesinhas decoradas com toalhas vermelhas sobre a mesa, postas para o jantar, e a figura do quadro de José Malhoa em destaque, ao fundo, pintada em cerâmica. Senti como se aquele aparente aconchego fosse o convite perfeito que precisávamos para passar a noite ali. 

"A Tasca" - Foto: arq. pessoal

     E assim fizemos. Encantados com o ambiente, ficamos ali para o jantar e para ouvir um fadista cantar, mergulhados no clima de nostalgia inspirado pelo local e pela música.

     Ao final da noite fomos agradecer ao gerente da tasca pelo jantar. Comentando com ele sobre "O Fado" em azulejo, na parede da tasca, ouvimos dele a informação de que o quadro original de José Malhoa ficava em exposição permanente no Museu do Fado, a duzentos metros dali.

"O Museu do Fado" - Foto: arq. pessoal 

     Na tarde do dia seguinte voltamos a Alfama. Além de gostar de museus, eu tinha agora um motivo a mais para conhecer o Museu do Fado. Descemos apressadamente a ruela da zona histórica de Lisboa, onde havíamos estado na noite anterior, e seguimos em frente até chegar ao Largo do Chafariz - endereço do Museu do Fado. Foi ali então que, por um bom tempo, deixei passear os meus olhos no original daquele quadro de que tanto gosto, e que simboliza muito da cultura do povo português: "O Fado", de José Malhoa. Como recordação, além de muitas fotos, trouxe dez cartões-postais com a imagem do quadro para a minha coleção.
_____________________________________ 
*José Vital Branco Malhoa (1855-1933) foi um pintor, desenhista e professor português.
**"O Fado" - óleo sobre tela, 150 cm de altura e 183 cm de largura
***na época, início do século XX, "fadista" era sinônimo de "marginal"
****Este pequeno filme, de 1947, pode ser visto em: https://www.youtube.com/watch?v=ZNCfktEU5L8&list=RDZNCfktEU5L8&start_radio=1&t=6

quarta-feira, 22 de abril de 2020

"CORONAVÍRUS"? ACABOU! FOI ABOLIDO!


Blog de Geografia: Mapa do Turcomenistão
Turcomenistão - localização


     "Repórteres Sem Fronteiras" é uma ONG internacional que foi fundada na França, em 1985, com o objetivo de defender a liberdade de imprensa no mundo. Anualmente, essa ONG divulga uma lista relacionando os países onde a liberdade de imprensa é maior ou menor. Esse ranking é elaborado levando em consideração a legislação no país a respeito do assunto, bem como as constatações de ataques ocorridos contra jornalistas.

     Para termos uma ideia a esse respeito, conforme posicionamento de 2020, dos 180 relacionados o Brasil é o 107º; os quatro países onde há maiores restrições à liberdade de imprensa são: China (177), Eritreia (178), Turcomenistão (179) e Coreia do Norte (180)*.

     Especificamente com relação ao Turcomenistão, uma informação me chamou a atenção nos jornais de hoje** e dos últimos dias**: por determinação do seu presidente****, a palavra "coronavírus" foi abolida da mídia estatal e das conversas privadas. Assim, no Turcomenistão a palavra "coronavírus" está proibida; quem usar máscaras na rua ou quem mencionar a pandemia em público será preso.

     Simples assim: o "coronavírus" não existirá se não falarmos dele."

     Resultado: até 01 de abril de 2020, conforme a BBC News*****, não há nenhum caso de coronavírus declarado no Turcomenistão.

     Que tal? Muito criativa essa solução, não é? Agora, não sei se resolve o problema. Pelo andar da carruagem, temo que essa ideia possa vir a contaminar o pensamento de alguns governantes dos países ocidentais, de tal forma a alguns deles resolverem proibir o uso e a propagação da palavra "coronavirus", por Decreto. Afinal, com uma eventual proibição, o povo e a mídia terão que dizer que "no país, o que há é apenas a constatação da existência de muita gente com uma gripezinha ou um resfriadozinho... e isso nem interessa para as estatísticas... mas, com 'coronavírus', não há ninguém: ele foi abolido por Decreto!".

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*Repórteres Sem Fronteiras, em https://rsf.org/pt/classificacao%20
**Folha de São Paulo, 22/4/20, pág. A9
****O Turcomenistão, cuja independência foi proclamada em 1991, é uma República Presidencialista (e unipartidária). O atual presidente, Gurbanguly Berdimuhamedow, está em seu terceiro mandato eletivo.

terça-feira, 14 de abril de 2020

O JORNALISMO GLACIAL E OS PRATOS SUJOS NA PIA DA COZINHA


Pia da cozinha - Foto: arq. pessoal

     Logo depois que tomei o meu café da manhã, e antes mesmo de começar a trabalhar na forma imposta pela quarentena, fui lavar os pratos, panelas e talheres que haviam sido utilizados em casa na noite anterior. Com o objetivo de ficar por dentro do que anda rolando pelo mundo, peguei o meu radinho de pilhas e o sintonizei em um noticiário. Só dava coronavírus. O locutor falava dos milhares de infectados na Itália, do elevado número de mortes nos Estados Unidos, da falta de respiradores nos hospitais brasileiros, das cidades desertas, dos familiares relatando a perda de entes queridos... Tudo notícia com o potencial de esmagar qualquer ser humano logo no começo do dia.


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Jeff Beck - "A day in the life" (Lennon-McCartney)

     De repente me dei conta de que, a cada notícia que ouvia, eu aumentava a pressão que exercia sobre a bucha encharcada de detergente, e aumentava a velocidade com que a deslizava sobre a superfície dos pratos que estava lavando. Não sou insensível a tanta notícia ruim. Uma notícia ruim, logo de manhã, é capaz de acabar comigo, de me deixar derrubado o dia todo.

     E enquanto eu lavava os talheres e as louças, ouvindo as notícias, fiquei pensando na maneira que elas têm sido transmitidas pelo jornalismo profissional. Os manuais ditam que o jornalista deve exercer sua função com total isenção e imparcialidade, de tal forma a não influenciar seus ouvintes, leitores ou telespectadores. Concordo, porém não para todo tipo de informação. Pelo rádio ouvi a notícia da existência de quinhentos novos casos de coronavírus ser noticiada sem nenhuma indignação; ouvi a transmissão, sem qualquer tipo de emoção, da notícia da falta de respiradores nos hospitais brasileiros; duzentas mortes na semana foram noticiadas sem nenhuma consternação; um entrevistado relatou o óbito de um familiar, e não ouvi nenhum soluço de dor.

     O escritor Nelson Rodrigues reclamava da ausência de pontos de exclamação nos títulos e nos textos dos jornais*. Com isso, ele queria dizer que a indignação e o sentimento, expressos pelo ponto de exclamação, estavam sendo abolidos das notícias, deixando-as insossas, chatas, apáticas.

     Pessoalmente, além do ponto de exclamação que era reclamado pelo Nelson Rodrigues, também sinto a falta das reticências em textos escritos. Afinal, as reticências servem para indicar uma certa hesitação no que se quer comunicar - e muitas vezes a notícia é transmitida dessa forma; as reticências transmitem, inclusive, emoção e subjetividade. Tanto o ponto de exclamação quanto as reticências sumiram do jornalismo. Pelo jeito, o emprego desses sinais ortográficos deve estar proibido nos manuais dos jornalistas.

     As vezes noto, no jornalismo falado, que o locutor muda um pouco o tom da voz ao transmitir uma notícia. Noto também que, no jornalismo televisivo, as vezes o repórter, ou o âncora de um jornal, força o levantamento de suas sobrancelhas para tentar enfatizar a sua fala. Mas não passam disso - ou, pelo menos, foram treinados a não se deixarem ir além disso.

     Dessa forma, as notícias, por piores que sejam, tornaram-se protocolares, insossas, lidas e transmitidas com a mesma frieza da água que flui da torneira da pia para simplesmente lavar o prato que acabei de ensaboar - e seguir seu destino rumo até o esgoto. 

     O que pode acontecer a um jornalista que deixa transparecer sua emoção pessoal ao transmitir na TV uma notícia ruim? E o seu momento seguinte, será que ele, fora do ar, pelo menos exclama "puta que o pariu, que notícia ruim!"?

     Foi pensando nessas coisas que, ao terminar de lavar os talheres, panelas e louças, senti que estava tenso, triste, e com a cabeça a mil. Inquieto e sem conseguir me acomodar para o trabalho que deveria realizar logo em seguida, fui ao banheiro e entrei debaixo do chuveiro, na tentativa de me recuperar do tamanho mal que a constatação da maneira protocolar que as notícias precisam ser transmitidas me causou. Só depois disso, um pouco menos incomodado, fui cuidar melhor do meu dia.

     Apesar de tudo, uma coisa é certa: as louças, as panelas e os talheres ficaram limpinhos, prontos para serem utilizados novamente. 
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*Conforme comentado por Carlos Heitor Cony em "O funeral da emoção" - crônica publicada em"O Tudo e o nada", da editora Publifolha. 

sábado, 11 de abril de 2020

"MIDNIGHT COWBOY"


Midnight Cowboy
Cartaz publicitário - "Midnight Cowboy"

     Midnight Cowboy* (no Brasil  com o título "Perdidos na Noite") foi lançado em 1969. O filme, premiado com o Oscar no ano de 1970, mostra o sonho que tem Joe Buck, um texano do interior do Estado, de ser bem sucedido em uma cidade grande.

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Midnight Cowboy - Harry Nilsson - Everybody's talkin'
Fonte: youtube

     Em Nova Iorque, cidade na qual ele se instala, Joe Buck se depara com a solidão das pessoas, a inexistência de cumplicidade afetiva entre os seus moradores, e, especialmente, com a pobreza que lá também havia. É interessante notarmos que essas constatações e esses enfrentamentos não são localizados, mas universais. Nos Estados Unidos, assim como em todos os países de qualquer continente, há o submundo, há os invisíveis, há os fracassados. O mesmo país que, em 1969, mostrava na TV a conquista da lua, mostrava também, nas telas dos cinemas, um homem vestido de cowboy, deambulando pelas ruas de Nova Iorque, acreditando que poderia sobreviver como garoto de programa. Mas o tempo foi mostrando ao interiorano que a vida na cidade grande não era tão fácil e acolhedora quanto ele imaginava.

     Depois de rever o filme, fiquei com a impressão de que tanto para as cidades grandes e desumanas quanto para as cidades pequenas e aparentemente solidárias a situação é a mesma: se em "Everybody's talkin'", uma das canções da trilha sonora de Midnight Cowboy, o autor diz que "todos estavam dirigindo a palavra a ele, mas ele ouvia apenas os ecos de sua própria mente", percebo que essa forma de conversar é uma característica existente nas relações do nosso tempo. Ao que me parece, assim como fazia Joe Buck, e assim como faziam os que dirigiam a palavra a ele pelas ruas de Nova Iorque, em Midnight Cowboy, os pretensos diálogos de nosso tempo, travados pelas ruas, calçadas e linhas de comunicação, excluídos os estritamente comerciais, têm se prestado unicamente a traduzir os pedidos de atenção, ajuda e carinho que fazemos uns aos outros. 


Everybody's Talkin'
(Fred Neil)

Everybody's talking at me
I don't hear a word they're saying
Only the echoes of my mind

People stopping staring
I can't see their faces
Only the shadows of their eyes

I'm going where the sun keeps shining
Thru' the pouring rain
Going where the weather suits my clothes

Backing off of the North East wind
Sailing on summer breeze
And skipping over the ocean like a stone

Everybody's talking at me
I can't hear a word they're saying
Only the echoes of my mind

I won't let you leave my love behind
No, I won't let you leave…
Won't… ah-haaaa!...
I won't let you leave my love behind
Todo Mundo Falando


Todo mundo falando comigo
Eu não ouço uma palavra que estão dizendo
Apenas os ecos da minha mente

Pessoas paradas olhando
Eu não consigo ver seus rostos
Somente as sombras dos seus olhos

Eu estou indo onde o sol continua brilhando
Através da chuva torrencial
Indo onde o tempo se adapte às minhas roupas

Recuando do vento Nordeste
Navegando na brisa de verão
E saltando sobre o oceano como uma pedra

Todo mundo falando comigo
Eu não ouço uma palavra que estão dizendo
Apenas os ecos da minha mente
Apenas os ecos da minha mente

Não vou deixar que você deixe o meu amor pra trás
Não, eu não vou deixar você sair ...
Não ... ah-haaaa! ...
Não vou deixar que você deixe o meu amor pra trás ...

________________________________ 
*"Midnight Cowboy" (Perdidos na Noite) - EUA, 1969. Dir.: John Schlesinger

quinta-feira, 9 de abril de 2020

SUAVE É A NOITE


O céu da cidade - Foto: arq. pessoal

Da sacada do oitavo andar vejo a cidade cansada. Cansada de esperar pelas pessoas que se trancaram em suas casas; cansada do vazio que nós, a ela, tivemos que impor. Levanto a cabeça e olho o céu. Vejo sua imensidão silente, povoada por astros que se harmonizam. A cidade, no deserto de suas ruas, é ameaçadora; o céu, da cidade deserta, é suave... tão suave quanto a noite que vejo, da sacada do oitavo andar. 

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"Suave é a noite", Moacir Franco
Fonte: youtube
https://www.youtube.com/watch?v=xBfNTYQxN38

quarta-feira, 8 de abril de 2020

FIGURAS MARCANTES


     Lá em casa, quando conversamos a respeito de alguém que tenha um estilo marcante, uma personalidade diferenciada, inesquecível, independente de ser voltada para o bem ou para o mal, exclamamos: "Que figura!" - ou seja, "que pessoa, ou que personagem peculiar!".

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Maria Bethânia - "Brincar de viver" (Guilherme Arantes e Jon Lucien)

     Na minha terra natal havia muita gente assim. Lembro-me de um senhor que trajava suspensórios e usava chapéu; que sempre tinha em seu bolso uma pequena caderneta na qual fazia anotações a respeito do que observava: "figura rara!" Havia também uma senhora que se alcoolizava e saía pelas ruas a proferir palestras que terminavam sempre com a mesma exclamação: "Psicologia!". Ganhou, evidentemente, dos meninos que a observavam, o apelido de "Psicologia": "que figura!"

     No cinema, muitos deixaram suas marcas: o Hannibal Lecter, em "O Silêncio dos Inocentes"; o Forrest Gump, em "Forrest Gump"; o Carlitos, personificado pelo Charlie Chaplin; o  Zé do Caixão e tantos outros: "que figuras!"

     Na música? O Elton John, com sua coleção de óculos; o Michael Jackson, cheio de cuidados; o Waldick Soriano em seu terno escuro, óculos escuros, chapéu preto: "que grandes figuras!"

     Lembra-se do Grande Otelo, da Wilza Carla, do Cauby Peixoto, do Jô Soares, da Aracy de Almeida, do Sílvio Santos? Criaram, cada um ao seu modo, um estilo próprio, "cheios de personalidade". O jornalista Ibrahim Sued, os estilistas Dener e Clodovil: "que figuraças!"

     Na política, o Jânio Quadros, meio maluco; o imperador Pedro II, com seu ar circunspecto; o Getúlio Vargas, baixinho, terno, charuto, chapéu...: "figuras!" 

     Na ciência, que tal o Einstein? - "Figuraça!"

     No futebol, o Sócrates, magro, boêmio, estilo intelectual; o Garrincha, "meninão", ingênuo, alegre... : "figuras!"

     Com tanta personalidade marcante espalhada pelo mundo, e em todos os tempos, aquieto-me em casa querendo crer que esteja longe do coronavírus, para simplesmente seguir vivendo... e pensando. Imagino que poderá haver um dia, em um futuro muito distante, que um ou outro ser, casualmente poderá se lembrar de mim. E ao me ver em suas lembranças, poderá ser capaz de esboçar um sorriso no rosto e exclamar: "não foi nenhuma 'figura marcante'... mas, que sujeito! falava baixo, devagar, ficava quieto, gostava de ouvir, procurava entender, e costumava dizer que, no fim das contas, não entendia nada... a respeito de nada."

domingo, 5 de abril de 2020

"LI BEIRUT"



Fayrouz Lebanese singer


     A Aranjuez, na Espanha, partindo de onde eu estiver, sempre vou: basta eu fechar os meus olhos.

     Dessa mesma forma, também vou a Beirute, no Líbano.


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Fairuz - "Li Beirut"
Fonte: youtube

     Mas, até há pouco, eu nunca tinha ido a Beirute ouvindo o Adágio do "Concierto de Aranjuez", em árabe, na voz da Fairuz.

     Quando menino, era a Fairuz quem cantava para mim na vitrola de minha avó. Olhando o disco girar e ouvindo o seu canto, visitei muitas cidades e países.

     Não consigo entender nenhuma das palavras que estão na letra de "Li Beirut" - a não ser "Beirut". Mas, convenhamos, "é preciso entender?"

     Afinal, "beleza não se explica; beleza a gente sente!"

sábado, 4 de abril de 2020

O TRABALHO DOMÉSTICO EM TEMPOS DE ISOLAMENTO FORÇADO


Foto: arq. pessoal

     Desde que o coronavírus nos forçou ao isolamento, eu e minha mulher percebemos que nós mesmos teríamos que cuidar de nossas roupas, preparar nossas refeições e fazer a limpeza de casa.


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Luiz Melodia, dele, "Juventude transviada"
Fonte: youtube

Mas para podermos nos adaptar ao home office e passar nossos dias sem ajuda externa, orientamos a Neli a ficar em sua casa. Com isso, deixando de utilizar o transporte público por um tempo, ela estaria evitando aglomerações, estaria cuidando de sua própria saúde, da saúde de seus familiares e da nossa saúde - pelo menos até poder vir ao trabalho e retornar à sua casa com tranquilidade.

     Mas hoje, sábado, próximo da data de seu pagamento mensal, combinamos por telefone que ela poderia vir até aqui, de carona com alguém ou "de uber", para receber o seu pagamento. E assim foi feito.

     No início da tarde, conforme combinado, de máscaras no rosto, eu e minha mulher atendemos ao toque da campainha e recebemos a Neli pela porta da cozinha.

     Ela, sem ter tomado o mesmo cuidado, assustada e aflita por nos ver de máscaras, contou-nos de toda a sua nova rotina nesses últimos quinze dias de isolamento. Da porta da cozinha, percebi que ela dirigiu seu olhar para a área de serviços e observou os varais cheios de roupas penduradas. Observou, também, sobre a pia da cozinha, muitos talheres, travessas, panelas e pratos lavados. Ao perceber que as tarefas que competem a ela pareciam estar sendo feitas por nós, manifestou seu receio em deixar de nos ser útil.

     Pobre Neli; pobres de nós... 

     Depois de lhe termos entregue o seu salário, agradecemos a ela pelo seu trabalho e a tranquilizamos em relação às suas preocupações:

     - Neli, não se preocupe. Estamos exaustos mas estamos bem. Volte para a sua casa e mantenha-se em isolamento social. Não vemos a hora de você poder retornar. Queremos você aqui, todos os dias, cuidando da casa e cuidando da gente.

     Ao ouvir nossa fala cansada e abafada por máscaras, recebemos dela um sorriso aberto e um agradecimento, próprio de quem, de repente, compreende a essencialidade do que faz:

     - "Eu gosto de trabalhar aqui com vocês" - disse-nos ela; "eu só não sabia que era tanto assim. Não aguento mais a quantidade de serviço que tenho que fazer lá em casa. Já deu, esse vírus, né?