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terça-feira, 14 de abril de 2020

O JORNALISMO GLACIAL E OS PRATOS SUJOS NA PIA DA COZINHA


Pia da cozinha - Foto: arq. pessoal

     Logo depois que tomei o meu café da manhã, e antes mesmo de começar a trabalhar na forma imposta pela quarentena, fui lavar os pratos, panelas e talheres que haviam sido utilizados em casa na noite anterior. Com o objetivo de ficar por dentro do que anda rolando pelo mundo, peguei o meu radinho de pilhas e o sintonizei em um noticiário. Só dava coronavírus. O locutor falava dos milhares de infectados na Itália, do elevado número de mortes nos Estados Unidos, da falta de respiradores nos hospitais brasileiros, das cidades desertas, dos familiares relatando a perda de entes queridos... Tudo notícia com o potencial de esmagar qualquer ser humano logo no começo do dia.


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Jeff Beck - "A day in the life" (Lennon-McCartney)

     De repente me dei conta de que, a cada notícia que ouvia, eu aumentava a pressão que exercia sobre a bucha encharcada de detergente, e aumentava a velocidade com que a deslizava sobre a superfície dos pratos que estava lavando. Não sou insensível a tanta notícia ruim. Uma notícia ruim, logo de manhã, é capaz de acabar comigo, de me deixar derrubado o dia todo.

     E enquanto eu lavava os talheres e as louças, ouvindo as notícias, fiquei pensando na maneira que elas têm sido transmitidas pelo jornalismo profissional. Os manuais ditam que o jornalista deve exercer sua função com total isenção e imparcialidade, de tal forma a não influenciar seus ouvintes, leitores ou telespectadores. Concordo, porém não para todo tipo de informação. Pelo rádio ouvi a notícia da existência de quinhentos novos casos de coronavírus ser noticiada sem nenhuma indignação; ouvi a transmissão, sem qualquer tipo de emoção, da notícia da falta de respiradores nos hospitais brasileiros; duzentas mortes na semana foram noticiadas sem nenhuma consternação; um entrevistado relatou o óbito de um familiar, e não ouvi nenhum soluço de dor.

     O escritor Nelson Rodrigues reclamava da ausência de pontos de exclamação nos títulos e nos textos dos jornais*. Com isso, ele queria dizer que a indignação e o sentimento, expressos pelo ponto de exclamação, estavam sendo abolidos das notícias, deixando-as insossas, chatas, apáticas.

     Pessoalmente, além do ponto de exclamação que era reclamado pelo Nelson Rodrigues, também sinto a falta das reticências em textos escritos. Afinal, as reticências servem para indicar uma certa hesitação no que se quer comunicar - e muitas vezes a notícia é transmitida dessa forma; as reticências transmitem, inclusive, emoção e subjetividade. Tanto o ponto de exclamação quanto as reticências sumiram do jornalismo. Pelo jeito, o emprego desses sinais ortográficos deve estar proibido nos manuais dos jornalistas.

     As vezes noto, no jornalismo falado, que o locutor muda um pouco o tom da voz ao transmitir uma notícia. Noto também que, no jornalismo televisivo, as vezes o repórter, ou o âncora de um jornal, força o levantamento de suas sobrancelhas para tentar enfatizar a sua fala. Mas não passam disso - ou, pelo menos, foram treinados a não se deixarem ir além disso.

     Dessa forma, as notícias, por piores que sejam, tornaram-se protocolares, insossas, lidas e transmitidas com a mesma frieza da água que flui da torneira da pia para simplesmente lavar o prato que acabei de ensaboar - e seguir seu destino rumo até o esgoto. 

     O que pode acontecer a um jornalista que deixa transparecer sua emoção pessoal ao transmitir na TV uma notícia ruim? E o seu momento seguinte, será que ele, fora do ar, pelo menos exclama "puta que o pariu, que notícia ruim!"?

     Foi pensando nessas coisas que, ao terminar de lavar os talheres, panelas e louças, senti que estava tenso, triste, e com a cabeça a mil. Inquieto e sem conseguir me acomodar para o trabalho que deveria realizar logo em seguida, fui ao banheiro e entrei debaixo do chuveiro, na tentativa de me recuperar do tamanho mal que a constatação da maneira protocolar que as notícias precisam ser transmitidas me causou. Só depois disso, um pouco menos incomodado, fui cuidar melhor do meu dia.

     Apesar de tudo, uma coisa é certa: as louças, as panelas e os talheres ficaram limpinhos, prontos para serem utilizados novamente. 
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*Conforme comentado por Carlos Heitor Cony em "O funeral da emoção" - crônica publicada em"O Tudo e o nada", da editora Publifolha. 

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