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quinta-feira, 28 de maio de 2020

ARANJUEZ, MON AMOUR


FOTO: Fonte de Vênus, Jardin de la Isla en Aranjuez - fonte: http://cecibustos.wordpress.com/2009/08/19/guillermo-carnero-capricho-en-aranjuez/


     É realmente incrível o quanto a música mexe com a gente. Com ela sonhamos, viajamos, criamos e nos nutrimos de esperanças. Com a imaginação estimulada por uma música podemos tudo, fazemos tudo. E é bom que seja mesmo assim. Afinal, sem as fantasias a vida fica muito chata. Pois vejam só.

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VIDEO: Clique para ouvir o Richard Anthony

     Eu era ainda muito jovem quando ouvi Aranjuez, mon amour pela primeira vez. Tínhamos lá em casa um compacto simples; o cantor era Richard Anthony, em gravação de 1967.

 Fonte: http://bimg2.mlstatic.com/richard-anthony-aranjuez-mon-amour-vinil-compacto_MLB-F-193948441_3957.jpg)

     Como a letra era em francês, e eu não tinha condição de entendê-la, debruçava-me em frente à vitrola e, olhando o disco girar, as imagens iam se sucedendo a cada  vez que ouvia a música. Ao longo dos anos, a imagem que a música me inspirou foi a de uma viagem aérea, uma viagem a lugares distantes, exóticos, sobrevoando países, observando de cima seus edifícios, ouvindo os seus sons e sentindo o pulsar da vida existente no povo de cada lugar por onde essa viagem estava acontecendo. Uma viagem longa e compassada.

     Interessante, pois tal imagem nada tem a ver com a letra da música, que fala de amor, de rosas e do tempo. Mas, talvez essa imagem me tenha vindo pelo andamento da música, lembrando um movimento lento e contínuo... a sequência do acorde inicial do violão, a melodia suave do instrumento de sopro que entra em seguida.

     Só depois, anos mais tarde, é que fui descobrir que Aranjuez, mon amour havia nascido do segundo movimento do Concierto de Aranjuez, composto em 1939 pelo espanhol Joaquin Rodrigo.

     Dentre minhas músicas preferidas, talvez esta seja uma das minhas cinco prediletas.

     Carreguei por muitos e muitos anos esse nome, Aranjuez, sem saber o seu significado. Mas como as coisas sempre acontecem quando a gente menos espera, foi em uma reunião há uns dez anos, por aí, que descobri o significado de Aranjuez. Eu estava em uma roda de amigos. Uma das amigas de minha esposa aproximou-se e apresentou-nos seu companheiro, que era espanhol. Conversamos com ele sobre viagens, países e costumes. E ao falarmos sobre a Espanha, contou-nos que era natural de uma cidadezinha, ao sul de Madri, chamada Aranjuez.

     - "Aranjuez? É uma cidade? Caraca! Não sabia disso!" - exclamei em voz alta.

     Todos ao redor se espantaram ao ver a minha reação ao ouvir e repetir várias vezes o nome daquela cidade.

     - "Aranjuez... Aranjuez... Aranjuez, mon amour!" - completei.

     Minha esposa e as demais pessoas, naquele grupo, não entenderam nada.

     - "Isso mesmo", disse o companheiro da amiga, "foi por tudo o que a cidade inspirou no Joaquin Rodrigo que ele compôs o Concierto de Aranjuez".

     A partir daí, esclarecidos os comentários, a conversa no grupo passou a ter como tema o Joaquin Rodrigo, o Concierto de Aranjuez e, consequentemente, a cidade de Aranjuez.

     Foi então nessa noite que fiz a descoberta: Aranjuez é uma cidade medieval espanhola, com bosques e antigos palácios rodeados por jardins e fontes.

     Mesmo com tal descoberta, a viagem que sempre imaginei, ao ouvir o Concierto, em nada foi alterada. Pelo contrário. Agora, ao ouvir o segundo movimento do Concierto, vejo também cavaleiros medievais, castelos, reis e rainhas sendo formados ao som do seu primeiro movimento.

     E, aliando a minha viagem, no segundo movimento, com os cavaleiros medievais do primeiro (movimento), o terceiro deles (movimento) acrescenta a imagem desses mesmos cavaleiros em campos floridos, empunhando as bandeiras de seus reinos, em incansáveis passeios no entorno de seus castelos.

Palácio Real - Aranjuez - fonte: http://thelife-roadtrip.blogspot.com.br/2010_11_01_archive.html

     O Concierto celebrizou o seu autor. Joaquin Rodrigo, que perdeu a visão aos quatro anos de idade, faleceu em 1999 aos 98. Sua percepção da cidade de Aranjuez ficou traduzida nos sons e perfumes que ele sentia quando lá estava - e que lhe inspiraram o belíssimo Concierto: o Concierto de Aranjuez.

                                             "Joaquin Rodrigo" - 1901-1999
                http://music.minnesota.publicradio.org/features/9907_rodrigo/images/rodrigo_older_lg.jpg

quarta-feira, 27 de maio de 2020

RIBEIRÃO PRETO, SP: A TORRE DA CATEDRAL


"A torre da Catedral" - Ribeirão Preto, SP (Foto: arq. pessoal)

Assim como um farol para os navegantes, a torre da Catedral é o ponto de referência para aqueles que se aventuram pelo centro da cidade.

sábado, 23 de maio de 2020

A PRESENÇA SÍRIO-LIBANESA NA CIDADE DE GUARÁ, SP


Inauguração do Monumento (15/09/1963). Da esq. para a dir.: Jorge "Barud"; Chauki; ...; Sr. Azor; Jamil Jorge; Nehif Antônio; Kaissar Khouri; José Nazir; ...; Webe Abboud; Hussein; Sr. Olavo Borges; ...; ...; Sr. Teté; ...; Pe. Milton; Sahid Elias (Milim); ...; Sr. Apá Bechara; Dr. Urbano Junqueira; Sr. Jorge Tannous; Sr. Antonio Abboud; Sr. Zakhi Tannous - Foto: arq. de família 


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Romeu Féres - "Barhum"
https://www.youtube.com/watch?v=JR43UTST22k


     Materializada em papel ficou a presença daqueles que estiveram na Praça Nove de Julho, em Guará, na noite do sexagésimo primeiro aniversário do Município (15 de setembro de 1963). Na ocasião, os imigrantes sírio-libaneses e alguns de seus descendentes, juntamente com os representantes da administração pública e a comunidade guaraense, reuniam-se para a inauguração do Monumento oferecido por eles, os imigrantes sírio-libaneses, à cidade. 

     Conheci e convivi com muitos dos imigrantes que estão na foto. Ainda criança, sempre os via passar pela casa de minha avó paterna - uma das primeiras imigrantes da cidade - para uma xícara de café, ou para um simples "bom dia".

     Identifico na foto o meu tio Jorge Mourani, mascate, apelidado "Jorge Barud", que vivia em uma pensão. Nunca se casou. Seus últimos anos foram vividos em um quarto de fundos na casa de minha avó. Flautista (tocava "nay"), era ele quem animava as festas nas quais eram formadas rodas de dabke.

     Identifico também o Chauki, um "patrício" sempre sorridente, que percorria as cidades da região em uma perua rural Willys, vendendo e fazendo a distribuição de produtos de beleza. Com um forte sotaque árabe, ele trazia sempre um enorme sorriso no rosto. Nos finais de semana, comendo amendoim, sentava-se ao lado de um enorme rádio para ouvir a transmissão de partidas de futebol.

     O Sr. Kaiser Khouri, ao fundo na foto, que tantas viagens fazia do Brasil para o Líbano, e vice-versa, formava em sua casa grandes rodas de "patrícios" para os jogos de cartas. Os Srs. Salim, Azor, Zé Gebrin, e alguns de seus próprios filhos, que tornaram-se meus amigos (Fauzi, Adônis, Samir, Choucri, Walid e Wadih), eram seus companheiros e parceiros. Sua casa era, para mim, um pedaço do Oriente Médio. Nem sempre havia espaço à mesa para o "carteado". Os excedentes, não se fazendo de rogados, aguardavam na sala de entrada sua vez de participar do jogo de cartas, preenchendo seu tempo com os dados, em torno de um tabuleiro de gamão. O Sr. Salim, já de muita idade, sempre tenso com as cartas nas mãos, fazia do cigarro o remédio para controle de sua ansiedade. Já bastante debilitado, e proibido de fumar, um lápis em sua boca substituía o cigarro.

     O Sr. José Nazir, também na foto, foi um comerciante interessante. Solteirão, sempre com um cigarro de palha na boca, ou em cima da orelha, tinha um sotaque árabe muito acentuado. Eu achava tão engraçado seu jeito de falar que, anonimamente, fazia ligações telefônicas para sua loja simplesmente para ouvi-lo falar. Ele, inquieto, querendo descobrir quem o havia chamado e que permanecia calado, não resmungava, não maldizia: falava de si mesmo, contava sua história de vida para o aparelho telefônico... O "Lar de idosos" de Guará foi o seu último endereço.

     Na foto também identifico os srs. Hussein, Antoun e Webe Abboud, meu pai, meus tios Milim e Apá, os Srs. Zaki e Jorge Tannous, além de autoridades civis e religiosas da cidade.

     Lembro-me também de muitos outros "patrícios" que não estão na foto: o Sr. Joani Saad, proprietário de uma loja de roupas, caminhava com suavidade, sempre elegante, com o colarinho da camisa abotoado; o Kassim, também mascate; o meu querido amigo Toufic, comerciante, em cuja loja eu passava muitas de minhas horas; o Zezinho Felício e seu pai, o meu tio Felício... Muitos outros ainda me vêm agora à lembrança... a família Chaud inteira, tio Felipe, Srs. Budu, Noraldo, Dib, Toufic, Chaudinho... o Neil Bechara... E como me esquecer das mulheres de origem ou descendência sírio-libanesa? dona Alice, dona Cecília, dona Eufrosia, dona Ramza, dona Suheim, Nijma, Zahkia, Odete, Zita, Hanna... tia Sarah... minha avó Labibe... e tantas mais... tia Jamila... tia Emília... 

     O monumento na Praça, construído de alvenaria comum em formato de paralelepípedo, com cerca de um metro e oitenta de altura, foi revestido de mármore negro e recebeu uma placa datada de 15  de setembro de 1963, com os seguintes dizeres: "À cidade, os libaneses".


O Monumento, reinaugurado em 10/maio/2008
Foto: arq. pessoal

     O monumento original, inaugurado na noite em que a foto foi tomada, desapareceu. No entanto, anos depois, resgatando a memória da cidade, a importância e a presença da comunidade sírio-libanesa em Guará, a administração pública municipal reinaugurou um novo monumento, idêntico ao original, no mesmo local da Praça Nove de Julho onde se encontrava o anterior, e onde permanece.

     Quando estou em Guará, vou até a esquina da Rua Deputado João de Faria com a Rua Campos Salles, bem no canto do quarteirão da Praça Nove de Julho. E ali estando, por alguns minutos reverencio o Monumento que vejo no começo dos jardins da Praça: lá estão, sem que ninguém os veja, os queridos "patrícios" que conheci e que permanecem guardados em minha própria história.       

Autoridades e comunidade no evento (lado direito do monumento)
Foto: arq. de família

segunda-feira, 18 de maio de 2020

SARAH VAUGHAN E A MÚSICA BRASILEIRA


"O som brasileiro de Sarah Vaughan - capa do disco - fonte: http://epifaniar.blogspot.com.br/2011_10_01_archive.html



"Há uma categoria para mim.
Gosto de ser identificada como
uma boa cantora de boas canções
e de bom gosto"
(Sarah Vaughan)


     Sarah Vaughan foi uma cantora norte-americana com voz e jeito de cantar muito marcantes. Nascida em 1924, fez sua primeira gravação em 1944. Cantava jazz. Porém, não se considerava uma cantora exclusivamente de jazz. Ela dizia que gostava de fazer e cantar todo tipo de música.



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Sarah Vaughan - "Bridges" (Milton Nascimento/Fernando Brant)

     Foi por intermédio da MPB que eu a conheci, no final da década de 70, quando em alguma estação de rádio eu a ouvi cantar "Travessia", em inglês, em uma gravação com o Milton Nascimento. Achei totalmente diferente aquela interpretação, e maravilhosa aquela voz forte, com passagens de graduações do grave para o agudo, e vice-versa, com elegância e delicadeza: muita técnica combinada com emoção.

     Na época não era fácil encontrar os discos que a gente queria - e o dinheiro era direcionado para as prioridades. Mas como para mim música sempre foi prioridade, encontrei o disco e o comprei sem pensar duas vezes. 

     O disco chamava-se "O Som Brasileiro de Sarah Vaughan" - nos Estados Unidos foi lançado com o nome "I Love Brazil". Nele, todas as músicas gravadas são brasileiras, e nas gravações houve a participação (inclusive vocal) de alguns artistas, tais como Milton Nascimento, Dorival Caymmi, Mauricio Einhorn, Wilson das Neves, Marcos e Paulo Sérgio Valle, Tom Jobim, e outros - cada qual em uma música específica.

     A Sarah Vaughan já havia estado no Brasil em 1958. Mas essa afinidade com a música brasileira nasceu de uma passagem sua por aqui em 1970, quando também participou de uma gravação antológica de programa de TV com o Wilson Simonal.

     Guardo "O Som Brasileiro de Sarah Vaughan" em vinil até hoje,  com muito carinho, mesmo depois de tê-lo comprado em CD. É, sem dúvida, um dos discos dos quais mais tenho ciúme. Nele foram gravadas versões em inglês de clássicos como "Travessia" ("Bridges"), "...Das Rosas" ("Roses and Roses"), "Se todos fossem iguais a você" ("Someone to light up my life")...

     Depois disso, em 1979, ela voltou a gravar músicas brasileiras em um outro disco igualmente belíssimo chamado "Copacabana" (do qual eu destaco a maravilhosa "Tetê", de Menescal/Bôscoli; "Bonita", do Tom; "Copacabana" de Braguinha/A.Ribeiro,... e simplesmente todas as outras).

     E, como se não bastassem dois discos, em 1987 gravou também "Brazilian Romance" - o terceiro disco com músicas brasileiras.
  
     Sarah Vaughan morreu em abril de 1990.

     Eu, até hoje, continuo me surpreendendo com as descobertas que vou fazendo em suas gravações. Ela é considerada pelos críticos uma das dez maiores cantoras de todos os tempos. Não me canso de ouvi-la.

domingo, 17 de maio de 2020

NAS TRILHAS DO TAIGUARA


     Taiguara* foi um destacado cantor e compositor brasileiro. Filho de artistas ligados à música, nasceu no Uruguai durante uma temporada de trabalho dos seus pais naquele país. Participou de diversos festivais de música popular, inclusive tendo sido um dos vencedores de "O Brasil canta no Rio" - festival organizado em 1968, pela hoje extinta TV Excelsior, no Rio. Nesse festival interpretou a inesquecível "Modinha", de Sérgio Bittencourt ("Olho a rosa na janela, sonho um sonho pequenino....").


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Taiguara - "Universo no teu corpo"

     Dentre as gravações que foram sucesso em sua voz estão "Helena, Helena, Helena", "Viagem", "Teu sonho não acabou", "Hoje" e muitas outras - esta última, só pra lembrar, está na trilha sonora do filme "Aquarius" (Brasil-França, 2016. Dir. Kleber Mendonça Filho).

     Em 1970 ele lançou o disco "Viagem". "Universo no teu corpo" é uma das canções deste álbum. Naquela época o Brasil vivia seus anos de chumbo. Apesar do clima de fantasioso otimismo no país, nessa canção ele dizia:

"eu desisto, não existe essa manhã que eu perseguia
(...)
Por uns velhos vãos motivos
Somos cegos e cativos
No deserto do universo sem amor"

     A vida artística do Taiguara não foi nada fácil. Considerado símbolo da resistência durante o período da ditadura militar brasileira, e praticamente impedido, então, de gravar suas músicas, foi obrigado a deixar o país. Exilou-se na Inglaterra. Lá estudou música e gravou um disco com o compositor e produtor musical francês Michel Legrand. No entanto esse disco, "Let the children hear the music", com 12 músicas gravadas, teve onze delas censuradas. Portanto, foi impedido de ir às lojas aqui no Brasil. As fitas da gravação desse álbum musical, nunca lançado, foram perdidas.

     Ao voltar do exílio ele gravou, em 1975, o disco "Imyra, Tayra, Ipy", com Hermeto Paschoal e outros grandes nomes da música brasileira. Pois esse disco foi recolhido das lojas, pela ditadura militar, em 1975, para ser lançado oficialmente, em todo o Brasil, apenas em  2013.

     Depois disso, partiu para um segundo autoexílio na Tanzânia e na Inglaterra.

     Com a abertura política, Taiguara voltou ao Brasil no início dos anos 80, trabalhou como jornalista e ainda gravou dois álbuns: "Canções de amor e liberdade" (1983), e "Brasil Afri" (1994) - ambos trazendo canções fortemente politizadas. Lembro-me de tê-lo visto cantar em dois shows, ambos em Ribeirão Preto, SP: um deles no Teatro de Arena, e o outro na Cava do Bosque. Inesquecíveis!!

     Em sua volta, com a perspectiva de uma "abertura política" naquele início dos anos 80, parodiou "Universo no teu corpo". E cantou:

"eu resisto, já existe essa manhã que eu perseguia
(...)
Nosso velho e bom motivo
São milhões de seres vivos
Num inferno desumano e desigual"
  
Universo No Teu Corpo
(Taiguara)

Eu desisto
Não existe essa manhã que eu perseguia
Um lugar que me dê trégua ou me sorria
Uma gente que não viva só pra si

Só encontro
Gente amarga mergulhada no passado
Procurando repartir seu mundo errado
Nessa vida sem amor que eu aprendi

Por uns velhos vãos motivos
Somos cegos e cativos
No deserto do universo sem amor

E é por isso que eu preciso
De você como eu preciso
Não me deixe um só minuto sem amor

Vem comigo
Meu pedaço de universo é no teu corpo
Eu te abraço corpo imerso no teu corpo
E em teus braços se unem versos à canção

Em que eu digo
Que estou morto pra esse triste mundo antigo
Que meu porto, meu destino, meu abrigo

São teu corpo amante amigo em minhas mãos
São teu corpo amante amigo em minhas mãos
São teu corpo amante amigo em minhas mãos

Vem, vem comigo
Meu pedaço de universo é no teu corpo
Eu te abraço corpo imerso no teu corpo
E em teus braços se unem versos a canção

Em que eu digo
Que estou morto pra esse triste mundo antigo
Que meu porto, meu destino, meu abrigo
São teu corpo amante amigo em minhas mãos
São teu corpo amante amigo em minhas mãos
São teu corpo amante amigo em minhas mãos
Universo no teu corpo (paródia)
(Taiguara)

Eu resisto
Já existe essa manhã que eu perseguia
Um lugar que me deu trégua e me sorria,
E uma gente que não vive só pra si

Já te encontro
Gente armada
Preparando o teu futuro
Procurando o renascer de um tempo escuro
Pra uma vida só de amor que eu aprendi

Nosso velho e bom motivo
São milhões de seres vivos
Num inferno desumano e desigual,

Pois lutar é nosso ofício
Diz a história, desde o início,
Que a maldade sempre chega ao seu final

Vou contigo
Meu pedaço de Universo é no meu povo
Eu te abraço e sinto perto um mundo novo
Que em teus passos se une em versos pelo chão

Vem que eu sigo
Caminhando entre os poderes e os perigos
Mas meu porto, meu destino, meu abrigo
São meu povo unido com suas próprias mãos…

     Taiguara faleceu em 1996, aos 50 anos de idade.

     Hoje, diante do cenário político desenhado no Brasil, seria bom que surgissem novos Taiguaras. Se ele próprio ainda estivesse por aqui, talvez pudesse nos contar exatamente por onde andou quando esteve na Tanzânia e na Inglaterra, o que viu, o que leu,  que pensou, com quem conviveu e o que conseguiu fortalecê-lo para que ainda pudesse fazer renascer sua vontade de estar mais presente e atuante, apesar dos seus dissabores.

     Pensando bem, olhando para o meu próprio umbigo, talvez fosse pelos mesmos lugares por onde ele passou que eu, politicamente inofensivo, devesse passar. Quem sabe, desse modo, ao retornar, assim como ele, eu seria capaz de levantar minha voz, bater panelas e afirmar, com convicção, que eu também resisto.

     - Mas ando tão descrente... 

quarta-feira, 13 de maio de 2020

VICTOR MEIRELLES E A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA


Lei Áurea Victor Meirelles
A abolição da escravatura (1888) - Victor Meirelles

Victor Meirelles (década de 1860)


     Nascido em Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, Victor Meirelles de Lima, conhecido como Victor Meirelles (1832-1903), foi um pintor e professor brasileiro, expoente no gênero "pintura histórica".

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J.S. Bach - Adagio, Oratorio BWV 249 (Philippe Herreweghe & Marcel Ponseele)


     Dentre suas obras mais conhecidas estão "A primeira missa missa no Brasil" (1860), "Batalha dos Guararapes" (1875-1879), "Cabeça de Velho" (1865), "Moema" (1866), "D. Pedro II (1864) e "A Abolição da Escravatura (1888).

     Em "A abolição da Escravatura", Victor Meirelles mostra o momento em que a Princesa Isabel, em 1888, entrega a Lei Áurea ao Barão de Cotegipe*. É interessante notarmos que, apesar da Lei tratar da abolição da escravatura no Brasil, Meirelles não cuidou de mostrar, na obra, a presença do negro na cerimônia. Isso indica, evidentemente, que a abolição não foi decorrente de um movimento promovido pelos que aqui viviam na condição de escravos, mas sim que a Abolição foi um processo político promovido pela família imperial.

     Também é interessante notarmos que, na obra, a Princesa Isabel faz a entrega da Lei ao o único senador do Império a votar contra a aprovação da Lei: o Barão de Cotegipe. Ao cumprimentar a Princesa, logo após a sua assinatura, ele (o Barão) assim se manifestou:

     - A senhora acaba de redimir uma raça e perder o trono!**

     No ano seguinte foi proclamada a República.
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*João Maurício Wanderley (1815-1889) - Barão de Cotegipe - porta-voz da bancada escravista do Senado.
**Fonte: "O fim da escravidão do Brasil tem relato histórico do Senado" - em - http://www.tvassembleia.org/noticia.php?idNoticia=14293

A ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO


A escravidão vista pelo artista francês Jean-Baptiste Debret
Comboio de café seguindo para a cidade (Debret)

     O Brasil foi o país que mais "importou" escravos africanos. Foi o último país da América Latina a abolir a escravidão. O IBGE* contabilizou que, entre os séculos XVI e meados do século XIX, cerca de quatro milhões de homens, mulheres e crianças vieram para o Brasil na condição de escravos.

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Jair Rodrigues - "Heróis da Liberdade" (Silas de Oliveira/Mano Décio da Viola/Manoel Ferreira)

     No mundo todo, o último país a abolir a escravidão foi a Mauritânia, no noroeste da África. Lá, a abolição, decretada em 1981, somente passou a ser considerada crime em 2007. 

     No continente americano, foi o Haiti, em 1794, ainda na condição de colônia francesa, o primeiro país a abolir a escravidão - o que desencadeou o processo de sua independência, ocorrida em 1804.

     E qual foi o primeiro país do mundo a abolir a escravidão? Veja só: foi Portugal, no ano de 1761. No entanto, esse decreto de abolição valeu apenas para Portugal Continental e suas colônias na Índia.

     Aqui no Brasil a escravidão foi mantida até o dia 13 de maio de 1888, dia em que a Princesa Isabel, filha do Imperador d. Pedro II, sancionou a Lei Áurea.

Lei Áurea Victor Meirelles
Victor Meirelles - "A abolição da escravatura" (1888)

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segunda-feira, 4 de maio de 2020

CONVERSANDO COM O TEMPO*


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Aldir Blanc - "Resposta ao tempo" (Aldir Blanc/Ronaldo Bastos)


"Ele aprisiona, eu liberto;
(...) ele adormece as paixões, eu desperto"
(em "Resposta ao Tempo")


     O homem amadurecido é chamado a dialogar; é preciso tocar em questões difíceis e inevitáveis. Difíceis porque requerem introspecção, envolvem idas e vindas, perdas e ganhos, risos e dores; inevitáveis porque são próprias do amadurecimento.

     O homem amadurecido ouve o interlocutor chamá-lo com austeridade.

     O interlocutor e o homem amadurecido se sentam, calados.

[Morre compositor e escritor Aldir Blanc, vítima de Covid-19]
Aldir Blanc (1946-2020)

     O interlocutor acha graça do silêncio e do jeito sem-jeito do homem amadurecido. O interlocutor nada diz, porém ri e zomba dos sofrimentos, angústias e choros experimentados pelo homem amadurecido.

     Para o interlocutor o esquecimento é fácil, as coisas passam, são apagadas. Mas o homem amadurecido não esquece. A capacidade de não esquecer é, ao mesmo tempo, uma vantagem e uma dor para o homem amadurecido. Diferente das possibilidades do interlocutor, o homem amadurecido  pode reviver. Reviver e sentir. E, sentindo, está sujeito a rir ou chorar.

     O interlocutor cuida de mostrar as folhas de outono contidas no coração do homem amadurecido, e que ditam sua finitude...

     O homem amadurecido relembra amores perdidos. O interlocutor sorri; ele ri dos abandonos sofridos pelo homem amadurecido. O interlocutor sabe passar, esquecer... O homem amadurecido guarda, revê, não consegue, definitivamente, fazer passar, esquecer...

     O interlocutor, incapaz de rever, tem a capacidade de fazer cicatrizar, aprisionar e fazer adormecer a chama da vida; o homem amadurecido, diferente do interlocutor, pode libertar, revisitar, reacender velhas paixões...

     No interlocutor, então, que passa sem sentir, é despertada a vontade de poder amar para também poder reviver... Mas o interlocutor não consegue passar pelas diversas fases pelas quais passou o homem amadurecido. O interlocutor, por ser infinito - e justamente por isso - é uma eterna criança e, como tal, desprovida do privilégio de poder amadurecer... e sentir.


RESPOSTA AO TEMPO
(Aldir Blanc/Ronaldo Bastos)

Batidas na porta da frente, é o tempo
Eu bebo um pouquinho prá ter argumento

Mas fico sem jeito, calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar, e eu não sei

Num dia azul de verão sinto o vento
Há folhas no meu coração, é o tempo.

Recordo um amor que perdi, ele ri
Diz que somos iguais, se eu notei
Pois não sabe ficar, e eu também não sei

E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos

Respondo que ele aprisiona, eu liberto
Que ele adormece as paixões, eu desperto

E o tempo se rói com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor prá tentar reviver

No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder
Me esquecer

8 de junho de 2016

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*leitura que faço da música "Resposta ao Tempo", de Aldir Blanc e Ronaldo Bastos

domingo, 3 de maio de 2020

A VELHA ESTAÇÃO


"O prédio da estação -Guará, SP"
Foto: presente recebido, há anos, do Dr. João Afonso (in memorian)

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"Ponta de areia" - (Milton Nascimento/Fernando Brant)

     Os trens eram uma extensão de minha casa. A estação, um dos meus quintais. O armazém de cargas, repleto de algodão ensacado, era o ponto de descanso dos cansaços da vida. Do outro lado dos trilhos, ainda no pátio de manobras, jogávamos futebol. O movimento do trem fazia estremecer as estruturas de minha casa. No meu quarto, um rachado na parede testemunhava a sua passagem.

     Um dia, a última composição: o último apito, o último vagão, o último aceno. E a estrada de ferro transformou-se em uma avenida enfeitada de palmeiras, por onde transitam veículos ocupados, sem nenhum aceno partindo de suas janelas.

     A quem tudo isso pode interessar, senão a mim? É a minha reserva afetiva... Cada um carrega em si seus próprios trens, suas próprias estações, seus próprios quintais. Os meus, desmaterializados, eternizaram-se em doces lembranças que me visitam em noites de insônia... 

"Estrada de Ferro desativada"
Fonte: Ademir Segundo, no facebook