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segunda-feira, 29 de junho de 2020

LOST IN SPACE: A DESVENTURA DE MAJOR TOM


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR
E ASSISTIR NO FINAL DA LEITURA)
David Bowie, dele, "Space Oddity" (1969)
https://www.youtube.com/watch?v=5lEwLAfL2xQ


Ao meu amigo Renatão


     Quando era menino sonhava em ser astronauta. Gostava de ficar sozinho. Achava que meu futuro seria mesmo ir para o espaço, ficar quieto ouvindo o silêncio, procurando por corpos celestes, olhando as estrelas, os planetas, e ficar pensando... Não sei bem o que pensaria, mas queria só ficar pensando...

     Com a chegada do homem à lua, em 1969, e com a gravação de "Space Oddity" pelo David Bowie no mesmo ano, comecei a expandir os pensamentos e analisar um outro lado da questão. Comecei a pensar que a ideia poderia não dar muito certo, que ficar sozinho no espaço poderia não ser tão proveitoso quanto me parecia.


gravity-poster
Foto: https://contracenario.wordpress.com/2013/07/25/festival-de-veneza-2013-conheca-os-participantes/


     Em "Space Oddity" um astronauta, o Major Tom, é lançado ao espaço, flutua no vácuo, e vê as estrelas e o planeta Terra de uma posição muito privilegiada. Em conversa com a base de controle na Terra, em um determinado momento ele se sente vazio e solitário naquela imensidão, e conta que sua aeronave sabe qual a rota a seguir. E ao se dar conta disso, ele tenta reconectar-se com seus familiares para ter pelo menos uma voz que lhe fizesse companhia. Contudo a conexão com a base de controle foi perdida e não mais poderá ser refeita. Desse momento em diante Major Tom e sua nave ficam flutuando no espaço... flutuando... flutuando.... incomunicáveis... até serem consumidos por completo... sem oxigênio, sem orientação, sem rumo: restos de vida e matéria esquecidos no espaço...

     Esse fim do Major Tom foi o começo das avaliações de minhas convicções.

     A solidão no espaço, assim como a solidão aqui mesmo no nosso planeta, desde que seja por pouco tempo e que traga consigo a certeza de retorno, pode parecer interessante. Mas é de um vazio assustador. O vazio sem perspectiva de preenchimento é contrário à natureza humana. Viver no espaço é desumano... As estrelas, a lua, os planetas, sem os olhos e os sentimentos do homem, tornam-se astros vazios... De nada serve a beleza do universo diante da inexistência de perspectiva dela ser compartilhada.

     Eu, menino crescido, já não quero mais ser astronauta. Desisti. Levanto cedo, faço o meu café, e fico esperando o dia amanhecer para poder contar aos que me ouvem as histórias que vivi e os sonhos que ainda tenho...

Space Oddity

Ground control to Major Tom
Ground control to Major Tom
Take your protein pills and put your helmet on

Ground control to Major Tom
(10, 9, 8, 7)
Commencing countdown, engines on
(6, 5, 4, 3)
Check ignition, and may God's love be with you
(2, 1, lift off)

This is ground control to Major Tom
You've really made the grade
And the papers want to know whose shirts you wear
Now it's time to leave the capsule if you dare

This is Major Tom to ground control
I'm stepping through the door
And I'm floating in the most peculiar way
And the stars look very different today

For here am I sitting in a tin can
Far above the world
Planet Earth is blue, and there's nothing I can do

Though I'm past 100,000 miles
I'm feeling very still
And I think my spaceship knows which way to go
Tell my wife I love her very much, she knows

Ground control to Major Tom
Your circuit's dead, there's something wrong
Can you hear me Major Tom?
Can you hear me Major Tom?
Can you hear me Major Tom?
Can you

Here am I floating round my tin can
Far above the moon
Planet Earth is blue, and there's nothing I can do
Incidente Espacial

Controle de solo para o Major Tom
Controle de solo para o Major Tom
Tome suas pílulas de proteínas e coloque seu capacete

Controle de solo para o Major Tom
(10, 9, 8, 7)
Iniciando contagem regressiva, motores ligados
(6, 5, 4, 3)
Checar ignição e que o amor de Deus esteja com você
(2, 1, levantar voo)

Aqui é o controle de solo para Major Tom
Você realmente conseguiu
E os jornais querem saber que camisas você usa
Agora é hora de sair da cápsula se conseguir

Aqui é Major Tom para o controle do solo
Estou passando pela porta
E flutuando de um jeito muito peculiar
E as estrelas parecem bem diferentes hoje

Pois aqui estou eu, sentado nesta lata
Bem acima do mundo
O planeta Terra é azul e não há nada que eu possa fazer

Apesar de estar além das cem mil milhas por hora
Estou me sentindo bem parado
E acho que minha nave espacial sabe para onde ir
Diga pra minha mulher que eu a amo muito, ela sabe

Controle de solo para Major Tom
Seu circuito pifou, tem algo errado
Está me ouvindo, Major Tom?
Está me ouvindo, Major Tom?
Está me ouvindo, Major Tom?
Está me

Aqui estou eu, flutuando em volta da minha lata
Bem acima da lua
O planeta Terra é azul e não há nada que eu possa fazer  


sexta-feira, 26 de junho de 2020

ANOITECER EM CASA


Foto: arq. pessoal


     Quando o sol demonstra cansaço, os cães latem o seu abandono pelas ruas da cidade. Depois se cansam.


CLIQUE NA SETA PARA OUVIR
Isabel Bayrakdarian -"Azulão" (Jayme Ovalle)


     As maritacas, fazendo algazarra, sobrevoam a minha casa e pousam nos fios de eletricidade. Depois escurece e elas se aquietam.


Foto: arq. pessoal

     Do jardim do meu vizinho, uma coruja me olha.

     Acomodada na árvore da calçada uma cigarra, zunindo, parece determinar que eu abra o portão, que eu entre, que eu me sente no chão do alpendre e fique ouvindo o tempo passar...

     Lá no quintal, os pirilampos fazem luzir a intermitência dos meus anseios...

     No meu quarto, a luz minguante do abajur insinua a necessidade do descanso...

     Deito-me.

     Na escuridão, ouço as vozes que costumava ouvir. 

     Depois tudo se aquieta. E eu adormeço.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

KATIE JAMES E O "BAMBUCO" ANDINO


Climandes: new report provides best-practices for farmers in Peru and the Andean region
Trabalhadores da região andina


     Ontem recebi de um amigo uma mensagem e um link para um vídeo feito por uma cantora colombiana, juntamente com o pedido de que eu o assistisse e opinasse a respeito.

     Ao abrir o link vi uma jovem de pele clarinha, muito simpática. Antes de cliclar no on, eu disse a mim mesmo: "De colombiana essa moça não tem nada!" Claro! E acredito que você, meu raro leitor, vai concordar comigo. Afinal, a gente sabe que o território colombiano foi habitado, inicialmente, por indígenas de diversas etnias. Depois chegaram os espanhóis, que trouxeram africanos para o trabalho escravo. E a miscigenação não parou mais. Assim o povo colombiano, colonizado pelos espanhóis, tem muito do indígena e do negro. Como é que eu poderia acreditar que aquela moça de pele clarinha seria colombiana?

     No entanto, meus olhos estavam voltados apenas para a cor de sua pele e de seus cabelos. Eu havia me esquecido de procurar compreender sua formação cultural e suas vivências. Incomodado com meus julgamentos defeituosos, anotei o nome da cantora e fui pesquisar sua biografia. Li que ela nasceu na Irlanda, que seu pai é irlandês, que sua mãe é inglesa, e que eles imigraram para a Colômbia quando ela tinha apenas dois anos de idade. Na Colômbia ela cresceu em um pequeno povoado, e depois foi estudar música, academicamente, em Bogotá. Participou de algumas bandas, mas seguiu carreira solo.

     Muito provavelmente em virtude de sua mudança do interior para a capital, bem como das diferenças culturais existentes entre as diversas regiões do país, ela contou  em suas publicações que quis compor uma canção para mostrar ao habitante da cidade grande os valores e a capacidade produtiva dos habitantes das pequenas cidades colombianas. Foi assim que nasceu "Toitico bien empaca'o", que é a canção que está no vídeo que me foi enviado pelo meu amigo: uma canção alinhavada em ritmo de "bambuco", gênero musical originário dos primeiros habitantes do continente americano, especialmente na região andina, e que servia para estimulá-los enquanto trabalhavam.

     Pois então vamos lá! Assistam ao vídeo e depois me contem se essa moça traz ou não alguns contrastes interessantes: uma jovem de pele clara e traços bastante frágeis, e que incorpora uma indígena valente com tempero de alma negra. Vamos assisti-la cantar "Toitico Bien Empaca'o" - um bambuco andino que eu adorei, que traz cheiro de terra molhada, que fala de raízes, de ancestrais, de café da manhã na cozinha e de valores interioranos: exatamente como as riquezas da região onde nasci, e que me custou algum tempo para que eu pudesse enxergá-las e dar a elas o seu devido valor.


CLIQUE NA SETA


Toitico Bien Empacao
(Katie James)

¿Que tal su café?
¿Cómo estuvo su agua e'panela?
¡Que buenas arepas las que prepara doña Rubiela!
¿Qué tal el ajiaco, con el frío de la mañana?
¿Y el sabor de la papa que traje fresquita allí e'la sabana?

Discúlpeme, si interrumpo su desayuno
Pa'salir de las dudas es el momento más oportuno
Dígame usted, si conoce la molienda
¿O el azúcar es solo una bolsa que le compran en la tienda?

¿Y cuénteme que sabe de su tierra?
¿Cuénteme que sabe de su abuela?
¿Cuénteme que sabe del maiz?
¿O acaso a olvidado sus antepasados y su raíz?

Dibújeme el árbol del cacao, mientras se toma
Ese chocolate con pan tosta'o
Dígame su mercé, ¿qué sabe del azadón?
Ese es el que le trae a usted la sopita hasta el cucharon

¿Y cuénteme que sabe de su tierra?
¿Cuénteme que sabe de su abuela?
¿Cuénteme que sabe del maíz?
¿O acaso a olvidado sus antepasados y su raíz?

Venga le cuento, los cuentos del huerto y de la malanga
La yuca, la yota, los chontaduros, la quinua, las habas y la guatila
Le tengo el guandú, las arracachas y la calabaza
Le traigo guineos, también chachafrutos
Y unas papitas en la mochila

¡Ay perdón señor!
Por ser yo tan imprudente
Es que a veces me llegan estos
Pensamientos irreverentes
¿Pa'qué va usted querer saber
Sobre el ara'o?
¡Si allí en la esquina lo encuentra
Toitico bien empaca'o!

Tudo bem embalado


Que tal o seu café?
Como estava sua água na panela?
Que broinhas boas são aquelas preparadas pela dona. Rubiela!
E a sopa de batatas com galinha no frio da manhã?
E o sabor da batata que se colhe fresquinha ali na savana?

Desculpe-me, se interrompo o seu café da manhã
Para tirar as dúvidas, é o momento mais oportuno
Diga-me se conhece a moenda
Ou o açúcar é apenas um pacote que se compra na loja?

Conte-me, o que sabe sobre a sua terra?
Diga-me, o que você sabe sobre sua avó?
Diga-me, o que você sabe sobre o milho?
Ou você esqueceu seus ancestrais e sua raiz?

Desenhe a árvore do cacau enquanto bebe
Esse chocolate com pão torrado
Diga-me,  o que sabe sobre a enxada?
É ela que traz para você a sopa até a colher

Conte-me, o que sabe sobre a sua terra?
Diga-me, o que você sabe sobre sua avó?
Diga-me o que você sabe sobre milho?
Ou você esqueceu seus ancestrais e sua raíz?

Venha que eu conto as histórias da horta e da batata doce
da mandioca, do inhame, da pupunha, da quinoa, das favas e do chuchu
Eu tenho o feijão guandu, as mandioquinhas e a abóbora
Trago-lhe bananas, também feijão de árvore
E algumas batatinhas na mochila

Oh, desculpe senhor!
Por ser tão imprudente
Às vezes me vêm esses
Pensamentos irreverentes
Por que o senhor vai querer saber
Sobre o arado?
Se ali na esquina você encontra
Tudo bem embalado!


segunda-feira, 22 de junho de 2020

INDIFERENÇA


São Paulo, Capital - Foto: arq. pessoal

"Sólo le pido a Dios
que el futuro no me sea indiferente"
(Leon Gieco)

     Albert Camus (1913-1960) foi um escritor e filósofo francês. Nascido na Argélia, então colônia francesa, escreveu vários livros nos quais procurava encontrar um sentido para a vida - ou, em outras palavras, ilustrar, em muitas de suas leituras, o seu sem-sentido [da vida]. "O Estrangeiro"* é um deles.

     Em "O Estrangeiro" Mersault, o personagem principal, é um homem frio. Encarando fatos e a realidade como uma mera sucessão de ocorrências sem sentido e sem consequências significativas, parece estar alheio a tudo o que acontece consigo mesmo e com o próprio mundo. Nada o afeta. É um ser apático, impermeável, anestesiado. Para ele tudo é vazio. Recebe a notícia da morte da mãe e fica indiferente a isso; é aprisionado em virtude de um assassinato banal e isso em nada o modifica; é levado a julgamento e fica indiferente ao seu destino. Mersault é, enfim, a apatia, a negligência, o vazio, o nada: um estrangeiro neste mundo.

     Camus foi o oposto do "estrangeiro" Mersault. Apesar de tuberculoso, escrevendo e editando um jornal clandestino, militou na resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1957 foi premiado com o Nobel de literatura.

     Quando ando pelas ruas de minha cidade, fico entristecido ao ver prédios pichados, praças descuidadas, ruas esburacadas, mãos pedintes e faces sofridas. Minha sensação é de desamparo e impotência.

     - "Sou Mersault? Sou Camus?", fico pensando. E volto para casa em pedaços.

     Analisando o sem-sentido da existência vazia de Mersault, o vazio existencial que ela parece provocar, e ainda comparando-a com as buscas e denúncias de Camus, fico pedindo a Deus que mantenha acesa em mim, enquanto eu aqui estiver, a capacidade de sentir, de me emocionar, de me encantar com toda manifestação de vida; que, de alguma forma, eu esteja sempre disposto a agir. Quero que a dor, a morte, a pobreza, a injustiça, o sofrimento dos acamados e o futuro não me sejam indiferentes. Que eu não me deixe simplesmente me arrastar pelo curso da vida sem querer dela participar, sem querer me dar conta do modo com que cada manifestação humana em mim repercute. Que, enfim, eu consiga ter sensibilidade suficiente para recolher, de cada gesto ocorrido em meu caminho, um exemplo e um motivo de inspiração para eu poder me expressar, continuar construindo a mim mesmo, aos que comigo se importam, ao homem como ser atuante, e ao próprio mundo como consequência.

(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR
E ACOMPANHAR A LETRA ABAIXO)
(Mercedes Sosa, com part. de León Gieco:"Solo le pido a Diós, de León Gieco)


Solo Le Pido A Dios (Leon Gieco)

Sólo le pido a Dios
Que el dolor no me sea indiferente
Que la reseca muerte no me encuentre
Vacía y sola sin haber hecho lo suficiente

Sólo le pido a Dios
Que lo injusto no me sea indiferente
Que no me abofeteen la otra mejilla
Después que una garra me arañó esta suerte

Sólo le pido a Dios
Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente

Sólo le pido a Dios
Que el engaño no me sea indiferente
Si un traidor puede más que unos cuantos
Que esos cuantos no lo olviden fácilmente

Sólo le pido a Dios
Que el futuro no me sea indiferente
Desahuciado está el que tiene que marchar
A vivir una cultura diferente

Sólo le pido a Dios
Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente
Eu Só Peço A Deus

Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a seca morte não me encontre
Vazio e só sem ter feito o suficiente

Eu só peço a Deus
Que o injusto não me seja indiferente
Que não me esbofeteiem a outra face
Depois que uma garra me arranhou essa sorte

Eu só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Em toda pobre inocência desta gente
É um monstro grande e pisa forte
Em toda pobre inocência desta gente

Eu só peço a Deus
Que o engano não me seja indiferente
Se um traidor pode mais que uns muitos
Que estes muitos não o esqueçam facilmente

Eu só peço a Deus
Que o futuro não me seja indiferente
Desenganado é o que tem que fugir
Pra viver uma cultura diferente

Eu só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Em toda pobre inocência desta gente
É um monstro grande e pisa forte
Em toda pobre inocência desta gente


___________________________
*CAMUS, Albert. O ESTRANGEIRO; tradução de Valerie Rumjanek. 30ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009 (publicado em 1942, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, porém escrito antes dela - de 1936 a 1940).

quinta-feira, 18 de junho de 2020

MÁRIO QUINTANA: O QUARTO DO POETA


("A Casa de Cultura Mario Quintana" - fonte: pt.wikipedia.org)


     Saí uma tarde pelas ruas de Porto Alegre e fui conhecer "a casa" do poeta Mário Quintana.


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ)
(Baden Powell - "Rosa", de Pixinguinha e Otávio Souza)


     Solitário, não se casou, não teve filhos. Viveu grande parte da vida em hotéis. Um deles - o Majestic - tornou-se patrimônio histórico. Adaptado, transformou-se no "Centro Cultural Mario Quintana". Ali, no quarto 217, o poeta viveu de 1968 a 1980.

     O prédio do Hotel Majestic, com passarelas suspensas sobre a via pública, foi considerado muito ousado para a cidade quando sua construção foi concluída nos anos 30. É muito interessante chegar ali: a sensação que me veio foi de estar entrando em uma grande galeria a ceu aberto, margeado por uma construção povoada por políticos e artistas que em outros tempos ali se hospedaram: Getúlio Vargas, João Goulart, Vicente Celestino... 

  
Lígia e eu - entrada do Centro Cultural MQ - Foto: arq. pessoal


     Logo no hall de entrada há uma miniatura do poeta com um convite talhado em pedra: 

     "Olá, sejam bem-vindos. Visitem meu quarto no 2º andar de minha casa" - diz o convite.

(Hall de entrada, Casa de Cultura MQ, convite para visitá-lo - foto: arq. pessoal)


     Subi pelo elevador e fui ao 217. De uma antessala, por uma parede de vidro que o protege, passei os olhos pelo quarto: um pequeno cômodo escuro mobiliado com cama de solteiro, poltrona, abajures e escrivaninha. Pelas paredes e sobre os móveis estão alguns posteres, livros e uma máquina de escrever. Tudo muito simples, tudo muito rico em afetividade... Senti vontade de entrar, de me sentar na poltrona, deslizar a mão sobre os objetos, ficar quieto, ficar olhando, pensando...

 ("O quarto 217 do Majestic: o quarto do poeta" - foto: arq. pessoal)


     "Não precisamos de muita coisa", disse-me em mensagem o quarto.

     Contam (1) que, uma vez, o poeta assim se expressou a respeito de sua moradia:

     "Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder minhas coisas".

     Saí dali em silêncio, remontando frases do quarto descrito pelo próprio poeta em um dos seus livros (2):

"Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! Imensamente perto, 
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim..."

___________________________________
(1)  assisbrasil.org/joao/quintana.htm
(2) "Este quarto", do livro de poemas "Apontamentos de História Sobrenatural" (1976)

sexta-feira, 12 de junho de 2020

BILLIE HOLLIDAY: STRANGE FRUIT


Fonte: http://lifeafterhate.org/wp-content/uploads/2010/07/strangeFruit.jpg  -  Alison Saar


     Nos Estados Unidos, a escravidão durou 221 anos. Até 1870, foram levados para lá entre 400 e 500 mil escravos*.


CLIQUE NA SETA PARA OUVIR
ACOMPANHE A LETRA, ABAIXO
("Strange fruit" - interpretação de Billie Holiday, gravada em 1939)
https://www.youtube.com/watch?v=Web007rzSOI


     O Ato de Emancipação (dos escravos nos EUA) entrou em vigor em 1863. Contudo, mesmo depois do final da escravidão, os negros norte-americanos continuavam impedidos de exercer livremente seus direitos civis e políticos. Organizações, tais como a Ku Klux Klan, que semeavam entre a população negra o terror e o medo, procuravam impedir sua integração social.

     Abel Meeropol, professor de colégio, certa vez viu uma foto datada de 1930 que mostrava dois negros enforcados. Seus corpos pendiam de uma árvore. Eles haviam sido presos por suspeita de roubo e assassinato de um operário branco. Os registros contam que uma multidão invadiu a cadeia, bateu nos dois negros e os enforcou. Seus nomes eram Thomas Shipp e Abram Smith. 

(O linchamento de Thomas Shipp e Abram Smith - EUA/1930 - foto de Lawrence Beitler - fonte:http://i.telegraph.co.uk/multimedia/archive/01841/Thomas_shipp_abram_1841009c.jpg)

     O professor, assombrado com o que vira na foto, publicou em 1936 "Strange Fruit" - um poema que traduzia com bastante propriedade aquelas imagens.

     Observo, no mencionado poema acima transcrito, a maneira como o autor dos versos descreve os corpos enforcados nas árvores:

"Strange fruit hanging from the poplar trees"
(frutos estranhos pendurados nos álamos)

     Nessa descrição ele menciona os álamos ("poplar trees") - árvores nas quais os enforcamentos ocorreram. Pois, na cultura de alguns povos, os álamos (os pretos)** são consideradas árvores que crescem nos infernos***; e que, pelo som produzido por suas folhas ao vento, representam o lamento fúnebre. São, por isso, considerados símbolo da morte.

     Os corpos pendurados, o autor os mostra como frutos estranhos que servem para os corvos, não para os seres humanos; que proporcionam uma estranha e amarga colheita:

"frutos para os corvos arrancarem,
para a chuva recolher, para o vento sugar,
para o sol apodrecer, para as árvores fazerem cair (...)" 

     E os corvos, devido a sua cor e à sua impertinência, são considerados figuras de mau agouro, anunciadoras de doenças e mortes. No poema, os corvos arrancam os frutos e os levam - simbolicamente, para a morte.

     Esse poema, posteriormente musicado, tornou-se uma canção que condena o racismo e a segregação racial nos Estados Unidos. Muitos artistas a gravaram. Mas é na voz de Billie Holiday, uma negra americana de origem pobre, de voz rouca e sofrida, que passou por todo tipo de sofrimento, que esse lamento fúnebre sangra.

 Strange Fruit

Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black body swinging in the Southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.

Pastoral scene of the gallant South,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolia sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh!

Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.

 Estranho Fruto

As árvores do Sul estão carregadas com um estranho fruto,
Sangue nas folhas e sangue na raiz,
Um corpo negro balançando na brisa sulista
Um fruto estranho pendurado nos álamos.

Uma cena pastoral no galante Sul,
Os olhos esbugalhados e a boca torcida,
Perfume de magnólia doce e fresca,
Então o repentino cheiro de carne queimada!

Aqui está o fruto para os corvos arrancarem,
Para a chuva recolher, para o vento sugar,
Para o sol apodrecer, para as árvores fazerem cair,
Aqui está uma estranha e amarga colheita.


_______________________________
* Fonte: Lessa, Ricardo. Brasil e Estados Unidos: o que fez a diferença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008 (pelo mesmo autor, no Brasil, para onde foram levados de 3,6 a 5 milhões de escravos, a escravidão durou 357 anos)
**Álamo-preto = choupo-preto
***Dicionário de Símbolos - Herder Lexikon - Ed. Cultrix, 1990